16 março 2012

Revisitar Mouzinho de Albuquerque

por João José Brandão Ferreira [TCOR/PILAV (R)]


“Essas poucas páginas brilhantes e consoladoras que há na História do Portugal Contemporâneo escrevemo-las nós, os soldados, lá pelos sertões da África, com as pontas das baionetas e das lanças a escorrer em sangue. Alguma coisa sofremos, é certo; corremos perigos, passámos fomes e sedes e a não poucos prostraram em terra para sempre as fadigas e as doenças. Tudo suportámos de boa mente porque servíamos El-Rei e a Pátria, e para outra coisa não anda neste mundo quem tem a honra de vestir uma farda. Por isso nós também merecemos o nome de soldados; é esse o nosso maior orgulho”.

Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Príncipe D. Luis Filipe)

Esta citação foi retirada da carta que Mouzinho escreveu, em 1901, ao Príncipe D. Luis Filipe de quem era Aio. Esta carta por demais notável – e que deveria ser lida e meditada em todas as escolas do País – constitui a síntese do seu pensamento de Homem, de Português e de Militar e reflecte em alto grau a elevada estatura moral do seu autor, espírito superior que não cabia no Portugal de então.

A figura de Mouzinho já foi evocada e estudada de todos os ângulos possíveis; as suas acções como militar, administrador e educador, dissecadas por numerosos autores, e bem assim o seu perfil como Homem, cidadão e o político que nunca foi.

Personalidade complexa, era dotado de grandes qualidades e algumas sombras, como é inevitável em todos os humanos. Mas entre umas e outras, o saldo recai amplamente nas primeiras e tudo deve ser avaliado à luz de um todo e de uma época.


“Aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”
Camões

Joaquim Mouzinho, nascido na Batalha, a 12 de Novembro de 1855, distinguiu-se entre os Homens da sua geração e ganhou jús a figurar na pleiade de portugueses que no dizer do poeta “se vão da lei da morte libertando”.

Evocar Mouzinho,nos dias que correm,representa um pequeno acto de coragem que me permito – sem ofensa de lisonja aos leitores – reputar de adequado, tendo em conta estarmos a evocar Mouzinho que tinha essa qualidade, a coragem – tanto física como moral -, no mais alto grau.

Lembro apenas esse memorável acto de coragem temerária – embora reflectida -, só possível num ser dotado de grande espírito militar e capacidade de liderança, que foi o golpe sobre Chaimite, feito de armas singular, glória exaltante dos nossos brios patrióticos e cujo valor encontrou eco nos principais países de então, confrontados com derrotas dolorosas de importantes exércitos da época.

Valor que fez reconhecer à generalidade da população portuguesa o direito que aqueles 50 bravos passaram a ter de ninguém se lhes dirigir sem se descobrir.

E tanto é de espantar o golpe de asa que fez Mouzinho entrar no Kraal do Gungunhana, protegido pela sua mais aguerrida “impie” de 3000 guerreiros, derrubando com decisão a paliçada que o protegia, todos petrificando com assombro; como, já na retirada, sentindo os vátuas que os seguiam de perto, inquietos por não completamente dominados, mandou parar a coluna e num gesto intuitivo de alto risco, ordenou aos orgulhosos negros que depusessem os seus escudos no chão de modo a sobre eles poderem os soldados portugueses descansar. E assim se fez, ficando completa a humilhação vátua e por arrasto a sua submissão.

Mas hoje não se ensina mais o significado de Chaimite à população portuguesa e muito menos à sua juventude. Provavelmente, em muitos meios, este e outros actos heróicos são considerados “demodés”; uma acção de violência que nada justifica; uma aventura imperialista; um esforço escusado, uma afronta à paz entre os povos e outras considerações de semelhante jaez.

Hoje em dia os portugueses deixam-se dominar pelos pseudo intelectuais de serviço que primam em aviltar a memória de quem se portou bem e de exaltar inequidades aviltantes. E a prova é que se financiam alguns destes artistas e se ignorou olimpicamente o centenário da morte de Mouzinho.

É pois a esta luz, isto é, fazendo um paralelo entre os exemplos de Mouzinho e alguns eventos dos nossos dias, que me proponho alinhavar a prosa restante.

Será mais um serviço que ele indirectamente presta à terra que tanto amou.

Assim antes de fazer uma incursão nos seus exemplos como Homem, Militar e Administrador, tentarei situar o personagem no Portugal de então e concluirei com uma certeza e um apelo.

A introdução fica assim feita, faltando apenas explicitar duas razões ponderosas da importância de comemorar a figura de Mouzinho:
- para se voltar a evocar os nossos heróis, sábios e Santos, ajudando desse modo a enterrar definitivamente uma leitura marxista da História que se impôs entre nós desde a época conturbada de 1974/5 e que tão perniciosos resultados tem dado;
- e para ajudar a reganhar a nossa auto estima como nação, muito abalada por eventos contemporaneos.


O Portugal Contemporâneo de Mouzinho

“Foram-se-nos mais de três partes do império de Além Mar e Deus sabe que dolorosas surpresas nos reserva o futuro ...”
Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Príncipe D. Luis Filipe de Bragança)

Mouzinho, nasceu no reinado efémero do muito prometedor rei D. Pedro V que a doença ceifou tão prematuramente.

Portugal tinha começado a viver, desde 1851, um período de paz civil, recuperação financeira e desenvolvimento económico. Este período seguia-se aos terríveis 50 anos anteriores, que tinham visto o país invadido pelos franceses por três vezes, que deixaram atrás de si um rasto de morte e destruição; assistido à partida da família real e de cerca de 10 000 pessoas de maior condição para o Brasil; à ocupação inglesa e perda do monopólio do comércio do Brasil e restantes territórios, para a Inglaterra; à Revolução Liberal de 1820, que veio a expulsar o governo de Beresford, e está na origem da independência brasileira, da primeira constituição portuguesa e da posterior divisão da família real e subsequente guerra civil; da guerra civil que durou de 1828 a 1834, que devastou o país; da revolução social que se seguiu ao seu termo, cujo expoente se situa na extinção das Ordens Religiosas e na reforma administrativa de Mouzinho da Silveira e ainda na formação de uma nova nobreza e na emigração da antiga; tudo isto seguido de uma tremenda e demorada crise, política, social, económica, financeira e religiosa, que acabou por desembocar noutra guerra civil, em 1847, a Patuleia, apenas terminada por uma intervenção militar anglo-espanhola!

Foi na sequência desta devastação que o Marechal Saldanha, conhecido cabo de guerra de outras batalhas e golpes de estado, forçou, “manu militari” a sua ida para primeiro ministro, em 1851.

A partir daqui as forças político-partidárias vendo o descalabro em que se encontrava a Nação, promoveram um entendimento em que dois partidos constituídos, um mais à direita – O Regenerador -, e outro mais à esquerda – o Progressista -, se alternariam no Poder, numa tentativa de imitação do parlamentarismo inglês.

Deu-se assim início ao “Rotativismo”, que funcionou sem precalços de maior até 1890, período marcado pela figura do General Fontes Pereira de Melo. Esse ano de 1890 viu surgir uma crise financeira o que acompanhado do “ultimatum” inglês, mergulhou o país em prolongada crise social e política. A monarquia portuguesa ia viver os seus últimos 20 anos de existência em que aumentaram sem cessar os ataques à família Real e ao Trono a que não eram estranhas as ideias socialistas introduzidas na sociedade portuguesa e, sobretudo, a emergência em força do partido republicano. Tudo veio a desembocar na revolta republicana gorada de 1891; pelo assassinato do rei D. Carlos e do herdeiro do trono, em 1 de Fevereiro de 1908 e, finalmente, no 5 de Outubro de 1910, onde a divisão e desorientação das forças monárquicas e a falta efectiva de liderança fizeram soçobrar uma Monarquia antiga de quase 800 anos, em menos de 24 horas, às mãos de cerca de 500 civis armados, meia dúzia de peças de artilharia e um subalterno de Administração Naval. E isto depois do chefe da revolta, Almirante Reis, se ter suicidado julgando a partida perdida!

Talvez o resultado de tudo isto tivesse sido diferente se a espada de Mouzinho não o tivesse acompanhado no túmulo ...

Quando Mouzinho nasceu, Portugal mantinha presença em quatro continentes, mas à excepção da Índia e do Brasil, o seu controle efectivo dos territórios era escasso. O esforço estratégico dos últimos 200 anos tinha-se concentrado no Brasil, território que, à data da independência tinha um nível de desenvolvimento idêntico à Metrópole e um potencial incomparavelmente superior. Por via das invasões francesas e das guerras civis subsequentes, Portugal falhou as duas revoluções industriais ao passo que víu destruído quase tudo o que detinha. A independência brasileira deu o golpe de misericórdia na economia e finanças.

Portugal, que no início do século XIX, se poderia considerar uma média potência, estava em meados do século quase desqualificado no concerto das nações e incapaz de acompanhar o desenvolvimento tecnológico em acelerada expansão.

Face às dificuldades existentes o Marquês de Sá da Bandeira, homem de incontestável valor (mas que se ficou por marquês enquanto outros de inferior estofo, foram a Duque ...), no preambulo do decreto Lei que abolia a escravatura, apontou a necessidade de se mudar o esforço estratégico para África de modo a lá se constituírem novos Brasis. O desafio foi aceite mas as guerras estrangeiras e internas, já citadas, os desatinos político-partidários; o caos financeiro; as querelas religiosas e a desorganização militar e administrativa fizeram gorar qualquer tentativa séria de desenvolver os territórios de além mar, à demasiado tempo entregues à sua sorte. Tal só veio a mudar quando o interesse sobre a África e as cobiças internacionais, que culminaram na Conferência de Berlim de 1884/5, fizeram com que o governo português acordasse da sua letargia e intentasse estudar, delimitar e ocupar “de facto”, os territórios onde a Bandeira portuguesa flutuava há quatro séculos. Isto só foi possível porém pelos progressos registados no período de 1851 a 1890 e que se traduziram na estabilidade das finanças, desenvolvimento da agricultura (Portugal continuava a ser um país essencialmente agrário) e na melhoria das vias de comunicação, transportes e infra-estruturas sociais. E, naturalmente, no reforço possível do Exército e da Armada.

A partir do início do século XIX, a África Negra deixou de ser olhada apenas como reservatório de escravos para passar a local apetecível de ocupação. Concorreu para isto a curiosidade científica, a procura crescente de produtos tropicais, a necessidade de matérias primas e a cativação de novos mercados que a Revolução Industrial não só potenciava, como exigia.

A perda de controle dos territórios que dispunham na América do Norte, por parte da França e da Inglaterra encaminhou estes países para outras paragens.

À medida que se entrava na segunda metade de oitocentos o interesse por África cresceu desmesuradamente.

Constatava-se a ignorância sobre tão vasto território, sobretudo o seu interior. E do interesse dos governos passou-se para a opinião pública e desenvolveu-se a Geografia. As viagens de exploração sucederam-se e toda esta actividade veio a culminar na Conferência de Berlim de 1884/5, onde se fez a partilha do continente e se desencadeou uma autêntica corrida a África.

Sobre forte pressão dos lobies industriais alemães, Bismark acabou por lançar os seus olhos sobre o Continente Africano e em apenas três ou quatro anos, formou-se o império alemão em África que englobava Angra Pequena, Camarões, Togo e a África Oriental Alemã.

Portugal cujo ambiente lhe era hostil conseguiu apenas duas vitórias:
- impediu-se o estabelecimento da Associação Internacional Africana na margem direita do Zaire;
- ter sido retirada do acto geral, a referência inglesa à internacionalização do Zambeze.

As decisões de maior peso que afectaram directamente Portugal foram a declaração sobre a liberdade de culto e a ocupação efectiva dos territórios. Sabia-se que só as grandes potências estavam em condições de fazer isto. Portugal não estava capacitado na altura para lidar com estas exigências e as outras potências sabiam-no. Portugal era o país que mais tinha a perder, percebeu o aviso e encetou numerosas acções para tornar mais efectiva a sua presença e salvaguardar os seus interesses.

Os “Ventos da História” da época outro mito do nosso tempo -, assim o impunham.

A situação no Ultramar era confrangedora. E, se no Oriente, as nossas posições, por modestas, não despertavam grandes cobiças, já a situação em África era de molde a suscitar os maiores ataques. Foi isso que veio a suceder.

E se na Índia se tinha enraizado uma casta aristocrática baseada na rede de famílias portuguesas estabelecidas, as possessões portuguesas de África, foram quase apenas ponto de passagem das caravelas, ou lugar de expiação de condenados durante três séculos e meio. As estruturas sociais eram, assim, muito débeis.

Foi, portanto, um povo desmoralizado e governos hesitantes e fracos, que em meados do século XIX, teve que passar a olhar para África, por um lado para encontrar alternativas à perda do Brasil; por outro, para fazer face às potências que nos queriam esbulhar. Mesmo assim o que se conseguiu fazer e salvaguardar, foi espantoso.

Com a Conferência de Berlim germinou em Portugal, o sonho do mapa cor de rosa, que encontra os seus primórdios no século XVI.

No entanto este sonho chocava com os interesses britânicos que pretendiam ligar o Cabo ao Cairo e daí resultou o “ultimatum” de 1890. O “Direito da Força” tinha-se sobreposto à força do Direito. Uma reflexão sempre actual.

A seguir à Conferência de Berlim, o governo português desencadeou um conflito de acções de âmbito militar, administrativo, de investigação e de delimitação de fronteiras e também de melhoria de infra-estruturas, comunicações e comércio. As campanhas militares iriam estender-se até aos anos 30 do século XX.

Mouzinho de Albuquerque – A voz dos Documentos e o exemplo da Acção.

“Enfim não houve forte capitão que não fosse também douto e ciente”
Camões

Joaquim Mouzinho não se limitou a ser um homem de acção, foi também um homem de pensamento e um escritor de mérito.

Este último aspecto não tem sido objecto de estudo e realce. Mas ao ler-se a sua vasta correspondência, os relatórios das campanhas e o livro “Moçambique”, que escreveu em apenas três meses, podem-se facilmente vislumbrar os seus dotes para a escrita. Três das suas cartas podem-se considerar de antologia. São eles, a carta que escreveu ao Presidente do Conselho de Ministros, José Luciano de Castro, em que justifica a sua demissão de Comissário Régio de Moçambique; a missiva que deixou para o Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira, seu substituto no governo da Província e esse monumento de sabedoria e honradez que representa a Carta ao Príncipe D. Luis Filipe, já referida. E através do que escreveu pode-se vislumbrar muito do que pensava e sentia. Por eles podemos constatar algumas constantes:

um cecrisolado amor Pátrio; a lealdade às instituições e sobretudo ao Rei; a ânsia pelo engrandecimento do reino; um grande orgulho por ser militar e o que tal representava e um desprezo ácido pelos políticos e pela baixa política.

“Todos sabem os apuros financeiros do país e sabem por igual que, para segurar o poder por mais 2 ou 3 anos, V. Exª e o gabinete a que preside não hesitarão em sacrificar o futuro”.

Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Presidente do Conselho de Ministros)

Estes desencontros entre militares e civis não são raros na nossa vivência colectiva e manifestam-se mais, durante a vigência de governos fracos e de menosprezo pela Instituição Militar. Vivemos hoje novamente uma épocas dessas e o que se tem passado não augura nada de bom. Reparem: sucessivos governos têm asfixiado as Forças Armadas através da via financeira, administrativa e em pessoal; o desinvestimento é quase total; a Assembleia da Republica ignora normalmente estes assuntos; durante as campanhas eleitorais as questões de Defesa e Segurança são sistematicamente excluidas do debate ou das preocupações de quem passa horas a fio a falar sobre as coisas mais desnecessárias; O Presidente da Republica em termos legais é essencialmente uma figura decorativa sobre a matéria; o poder executivo já escolhe os chefes - militares que quer, sem intervenção da Instituição Militar e, a seguir, demite-os e até o poder judicial está em vias de ser retirado às Forças Armadas.

Numa palavra o poder político em vez de intentar estabelecer regras claras de subordinação, procura impor caminhos ínvios de submissão. E isto é apenas uma ponta do iceberg. Ultrapassa por isso a nossa compreensão como é que uma instituição fundamentalmente para o Estado e á Nação possa andar de candeias às avessas com aquele. Esta realidade é, certamente, um exemplo típico de menoridade cívica!

Mouzinho como Homem

“Em resumo Exmo Senhor, a minha superioridade consiste em ter só uma cara”
Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Presidente de Conselho de Ministros)

Como disse Júlio Dantas, Mouzinho era grande demais para caber na sociedade portuguesa de então, que não sabia o que havia de fazer dele. E “embora a lealdade desse “chevalier sans peur et sans reproche” estivesse acima de todos as dúvidas, temiam-no.

Parece poder apontar-se Robert Clive, Lyautey, Caldas Xavier e Joaquim Durant, Comandante da Cavalaria de Napoleão, como inspiradores da sua acção.

Mouzinho não era simpático para com o comum das pessoas e que não poderiam assim apreciar a lhaneza do seu trato intimo.

Era um Homem de carácter e um Homem de bem. Era rijo e possuía uma resistência fora do comum à fadiga, ao frio, à fome e era um trabalhador incansável. Era autocrata: “ninguém manda aqui senão eu enquanto fôr governador geral”, chegou a afirmar. Tinha um orgulho desmedido e uma decisão rápida.

“Audácia e Método”, é um lema que se lhe aplica e que é bem ilustrada pela sua frase

“Aproveitar na vida e na guerra as ocasiões e caír-lhe em cima
como o milhafre sobre a presa”

Chaimite é o exemplo acabado desta tese. Joaquim Mouzinho era um chefe nato, um líder carismático, que arrastava os Homens – que o respeitavam, atrás de si. E é apropriado o que o Prof. Marcello Caetano, dele disse

“a figura de Mouzinho de Albuquerque como chefe, tão grande como nenhuma outra”

Por outro lado, Mouzinho como pedagogo está bem ilustrado na celebre carta ao Príncipe D. Luís Filipe e que este nunca chegou a ler, já que só foi divulgada em Maio de 1908, já depois da sua morte.

D. Carlos ao apresentar-lhe o príncipe, disse: “Aqui o tens, faz dele um homem e lembra-te de que há-de ser Rei”. E foi pena que o príncipe, que nutria grande admiração pelo seu Aio, não a tivesse lido pois representa uma extraordinária lição de amor pátrio, nobreza moral, alta política e inteireza de carácter. Numa palavra de grande pedagogia política moral e social. Bastava esta carta, mais tarde apelidada de “entre mortos”, para que D. Carlos tivesse dado por bem julgada a decisão de tornar Mouzinho preceptor do seu herdeiro, numa tradição que vinha de D. Afonso III, que foi o primeiro rei português a dar a casa a seu filho – o esclarecido D. Dinis -, e a ter a noção da necessidade de cedo o preparar para ser Rei. E Mouzinho queria fazer do príncipe um soldado, dizia: Por isso repito, primeiro que tudo tem Vossa Alteza que ser um soldado”.

E outros paralelismos se podem fazer com o presente: a falta de preparação das “elites” políticas para a governação; a ignorância de muitos sobre matérias fundamentais e até do próprio país e da sua gente, por terem sido formados em universidades estrangeiras, alguns deles por terem fugido aos seus deveres militares para com a comunidade; outros por saírem directamente dos partidos políticos, que em vez de serem escolas de cidadania, se deixaram transformar em agências de empregos. Isto, claro, sem referir a evidencia de que a esmagadora maioria de todos eles nunca ter passado pelo serviço militar. E temos que considerar a coragem, qualidade que Mouzinho possuía em elevado grau. Coragem física, sim, mas, sobretudo, coragem moral, que o levava a arrostar com a responsabilidade independentemente das consequências e a só ter uma cara.

Qualidades raras em todos os tempos, onde imperam os pseudo chefes que preferem “burro que os louve, a cavalo que os critique” e as personalidades que respondem a uma simples pergunta “que horas são”, qualquer coisa do género “são as horas que V. Exª Senhor Ministro, quiser que sejam ...

Joaquim Mouzinho não era ambicioso, senão outro teria sido o desfecho do drama. O seu desaparecimento constituíu um alívio para os medíocres.

Até o suicídio aparenta ter sido um acto de estoicismo de quem, inconformado, estiolava, levando uma existência que não gozava e impotente para evitar os desmandos políticos e afastar a intriga da sua pessoa.

Dele se pode dizer o que Eça de Queiroz disse sobre Guerra Junqueiro:
“Concluindo que a vida lhe não convinha, saíu dela voluntariamente”

Mouzinho libertou-se assim do “sol negro da melancolia”, no dizer de Roberto de Morais.

Mouzinho sempre teve uma relação estreita com a morte, queria “morrer bem” e era seu ideal “morrer a tempo”. E muitas vezes se tentou interpor entre a morte e os seus homens. Eis alguns dados elucidativos: após o combate de Coolela, dizia “chega-se a ter inveja dos mortos”; depois de Macontene: “Maria José que bela oportunidade perdi hoje de morrer”; após a prisão do Maniguana, ao lamentar-se de que a bala que ferira Vieira da Rocha na perna, não lhe tenha acertado na cabeça; Falhou-me em Macontene desabafava, com o seu intimo amigo Bernardo Pindela, referindo-se à morte desejada, “porque os pretos não sabem atirar, falha-me agora a guerra do Transval. Só resta o fuzilamento no Rossio”; e em passagens da nunca por demais citada carta ao seu príncipe. “Do cativeiro infamante salvou-o a morte, única libertadora invencível porque não há algemas que prendam um morto”; e “... nomeado por Deus, só ele o pode render e então envia-lhe a morte a chamá-lo ao descanso”.

É ainda Mouzinho que escreve, ao evocar o Natal que ele passou em Languene na véspera da partida para a jornada de Chaimite:
“Tivesse eu a esperança de outro Natal semelhante e veria correr os anos sem desgosto, olharia cheio de animo para a vida, sem a considerar apenas como um caminho lento mas seguro para a morte, consoladora suprema do que se sofre neste mundo, destruidora providencial de quantos enfados, desgostos e desilusões.

E dele também disse o também grande militar, general Gomes da Costa:
“... desse grande soldado chamado Mouzinho de Albuquerque que teve a coragem de se meter na sepultura quando começou a derrocada que conheceu não poder sustar ...”

E até na morte, quis Mouzinho demonstrar a sua determinação e perfeccionismo. Possuindo um revolver regulamentar, usou um outro, “Bulldog”, de calibre (45) superior e velocidade inicial mais lenta a fim de ter a garantia que não falhava (munições que comprou na rua do Ouro, na casa Reynolds).

Mesmo assim o suicídio continuou pelos tempos fora, a constituir um enigma para muitos e a frase do seu intimo amigo Conde de Arnoso, ao afirmar que tinha morrido de “Mouzinhice”, não ajudava a esclarecer o mistério.

Três cartas expedidas no dia da sua morte uma à sua mulher, outra ao Conde de Tarouca – escrita no Turf Club -, e a terceira à Rainha D. Amélia, esclareceriam, por certo, o mistério. Mas a primeira foi para o túmulo com D. Maria José; a segunda foi queimada e nunca lida, após a morte do seu destinatário por decisão testamentária e a última desapareceu, sendo encontrada, mais tarde na Torre do Tombo. Dizia:

“Minha Senhora
Perdoe-me Vossa Majestade e não me ache cobarde pelo que fiz. Mas ser tido em mau conceito, ser desprezado é mais do que posso. Não creio que o suicídio nestas circusntâncias não seja um direito. Minha Senhora! Vossa Majestade nada perde senão um homem que no seu serviço fazia tudo e de tudo era capaz. Mas não poude ser. Paciência.
Perdoe-me Vossa Majestade e reze por mim, se acredita que existe alma. Eu não acredito. Beijo as mãos de Vossa Majestade cheio como sempre de reconhecimento e dedicação.

Seu Maior criado
Mouzinho de Albuquerque”.

Foi no entanto a Rainha D. Amélia que nutria especial afeição por Mouzinho que melhor levantou o véu do mistério, no livro que escreveu antes da sua morte: “Eu, Amélia, Rainha de Portugal.” Por ele ficamos a saber que era convicção da soberana que Mouzinho pretendeu com o seu sacrifício, pôs fim definitivo às atoardas postas a correr e que atentavam contra a honra de ambos.

Num balanço rápido pode afirmar-se que Mouzinho foi sobretudo um português e patriota, outra característica que nos faz muita falta nos tempos que correm.

Joaquim Mouzinho – O Militar

“Este reino é obra de soldados”
Mouzinho de Albuquerque
(in, carta a S. Alteza Real o Príncipe D. Luis Filipe de Bragança).

A carreira militar de Mouzinho, ilumina-se através das seguintes acções militares. Todos elas vitoriosas:
participando no combate de Coolela e ocupação do Manjacaze;

Comandado pessoalmente:
- o golpe de mão sobre Chaimite e aprisionamento do Gugunhana;
- a pacificação do Maputo;
- a campanha dos Namarrais onde se travaram os combates de Mujenga, Naguema, Ibrahimo e Mucuto-Munu;
- a campanha de Gaza onde se registaram os combates de Macontene, Mapulanguene e Calapati;
- as campanhas da Zambezia em 1897 e 98.

Em todas estas acções que espantaram o mundo, tendo em conta os nossos muito limitados recursos e as derrotas que outros mais fortes que nós, tinham sofrido, e cujo espírito é ilustrado pelo seguinte diálogo, que antecedeu o combate de Magul:

“guia civil, António:
- meu capitão, 6500 negros, são muitos negros ...”

Paiva Couceiro:
- “mas 275 portugueses também são muitos portugueses

Em todas estas acções Mouzinho demonstrou as suas extraordinárias qualidades de chefe e de militar das quais se destacam a sua serenidade e bravura debaixo de fogo, como é ilustrado pela sua postura na batalha de Coolela fumando charuto à direita do Coronel Galhardo, que tinha à sua esquerda o Tenente Pinheiro, que empunhava a primeira bandeira que acompanhou as forças expedicionárias em África e que está hoje à guarda da Sociedade de Geografia. Mouzinho viu o seu cavalo ser morto nesta acção.

Além de corajoso, era intrépido e bravo. Recorde-se a famosa carga de Macontene em que Mouzinho sai do quadrado à frente dos seus 50 lanceiros, levando apenas um ... stick! Mas sabia ser temperado; quando em Mujenga intentava liderar uma perigosa carga, foi detido por Gomes da Costa que lhe chamou a atenção de que os seus deveres de comandante o impediam de se arriscar tanto. Mouzinho apesar de contrariado acatou o alvitre.

Mouzinho tinha, enfim, um conjunto alargado de virtudes militares: iniciativa, capacidade de decisão, sangue frio, estoicismo etc. comandava pelo exemplo e tinha estofo de general:

Aliava a visão estratégica á flexibilidade táctica as quais eram suportadas por vasta cultura e capacidade intelectual e organizativa. E punha em tudo a mais estrita ética.

Mouzinho não estava apenas eivado de espírito militar: ele era o espírito militar, como bem demonstrado por mais uma passagem da carta, tantas vezes citada:

“Porque ser soldado não é arrastar a espada, passar revistas, comandar exercícios, deslumbrar as multidões com os doirados da farda. Ser soldado é dedicar-se por completo à causa pública, trabalhar sempre para os outros”

Mouzinho de Albuquerque
(in carta ao Príncipe D. Luis Filipe de Bragança)

Mouzinho não deixava nada ao acaso e preparava as suas acções. Antes de ser mobilizado para Moçambique, estudou as campanhas que outras potências europeias já tinham realizado em África e aconselhava-se com quem sabia, nomeadamente Caldas Xavier. Obtinha informações sobre o inimigo, o armamento e as tácticas e tentou preparar o seu esquadrão o melhor possível para o que ia encontrar e em fazer dele “uma boa tropa”. Quando embarcou já tinha ideias assentes sobre como se deveriam processar as operações e disso deu conta em artigos que escreveu no jornal Novidades e expôs o que pensava ao próprio ministro do Ultramar. Mas não o conseguiu fazer ao governador de Moçambique António Ennes, quando aportou a Lourenço Marques. A nomeação de Ennes tem uma história curiosa: Quando os Vátuas cercaram Lourenço Marques, em 1894, o governo português não sabia muito bem o que fazer. Ennes estava em Lisboa e era jornalista, na altura. E como tal zurzia o governo. D. Carlos chamou-o e disse-lhe: “Se tu dizes tão mal do governo é porque és capaz de fazer melhor”, ao que aquele respondeu, afirmativamente, desde que o governo lhe desse plenos poderes. O rei convenceu o governo a nomeá-lo Comissário Régio. António Ennes, que chegou a Moçambique em Janeiro de 1895 não tinha experiência de África nem percebia nada de tropa, mas teve a inteligência e a humildade de ir escolher os melhores oficiais que havia na Marinha e no Exército. As operações que vieram a ser planeadas estão assim, competentemente delineadas (e já tinham começado, tendo-se ferido o combate de Marracuene, em 2 de Fevereiro) e ajustavam-se ao pensamento de Mouzinho, que entretanto chegou em Maio. Este, porém, não gostava, de Ennes, embora nunca deixasse transparecer isso em público.

Mas com os seus íntimos tratava-o por “chungo-congolo”, expressão depreciativa que no dialeto Quitonga, de Inhambane, quer dizer, europeu grande. Mouzinho era teimoso acreditava no valor dos militares e não gostava em geral dos paisanos, especialmente dos políticos, que acusava de terem duas caras. Sem embargo, acabou derrotado por eles.

Finalmente, Mouzinho era um inovador. Sendo o primeiro a utilizar e a desenvolver o conceito de armas combinado, utilizando o movimento, o choque e a manobra e adequando a infantaria, a cavalaria, a artilharia, as metralhadoras, a engenharia, a intendência e até a marinha, às necessidades de cada acção; desenvolveu novas tácticas, como foram por exemplo, as cargas de cavalaria em mato cerrado (contra tudo o que se ensinava); e a formação de pequenos grupos de atiradores que procuravam limpar o terreno à volta do quadrado. E a campanha de Gaza foi considerada por numerosos especialistas, a mais bem concebida e levada a cabo, de todas as que se realizaram no Sul da África. Este espírito de inovação e gosto pelo risco são características que muito fazem falta nos dias que correm ...

Pode-se considerar como epilogo da vida militar activa, de Mouzinho a ordem à força armada do exército da África Oriental datada de 30 de Julho de 1898, após a sua demissão de Comissário Régio.

Eis um pequeno excerto:
“Srs. Oficiais, oficiais inferiores e mais praças desta guarnição ...
Tenho a consciência que, enquanto estivestes sob as minhas ordens, não teve o vosso brio de soldados portugueses que sofrer a afronta de ver pactuar com rebeldes, poupar o castigo a traidores, nem recuar perante os inimigos de El-Rei e da Pátria. Entregando o comando resta-me a esperança de que continuem a manter-se intactas nesta província a honra da nossa bandeira e as gloriosas tradições do Exército e da Armada portuguesa”

Caros leitores, que grande contraste encerra esta missiva com muitos outros exemplos que conhecemos! ...

Mouzinho o administrador

Mouzinho, o herói militar, veio a revelar-se também como um excelente administrador e, como nos outros campos, também neste estava à frente do seu tempo. Esta fama obteve-a como Comissário Régio em Moçambique, nomeação algo forçada pelo rei, não sem que tivesse de ultrapassar alguma oposição surda de políticos influentes. A sua fama deveu-se não só ao trabalho desenvolvido mas também ao modo como decorreu a sua demissão do cargo. Mouzinho, porém tinha já basta experiência dos assuntos ultramarinos, por ter exercido o cargo de Secretário Geral, do Governo da Índia, por três anos, a partir de 1886 e governador do Distrito de Lourenço Marques entre 1890 e 1892. E conhecia ainda muito bem o modo de funcionamento do Ministério da Marinha e Ultramar, que se veio a revelar o seu pior inimigo.

Mouzinho era grande adepto dos métodos de administração colonial inglesa e pretendeu impôr as ideias de descentralização administrativa em África que apenas vieram a ser adoptados, e por pouco tempo, após a Republica, ensaiados em 1914 e reforçados em 1920, com a nomeação de Altos Comissários para Angola e Moçambique.

O seu pensamento é bem, ilustrado pelo seguinte extracto de uma circular enviada aos governadores de Distrito, em 29 de Julho de 1896:
“A grande distância e morosidade e pouca frequência de comunicações e o pouco conhecimento e defeituosa compreensão que há na Europa das necessidades e circunstâncias mais atendíveis nos países do Ultramar, tornam improfícua, quando não nociva, a administração directa do governo da Metrópole nas colónias”.

E aqui está outro ponto importante que podemos aproveitar para os dias de hoje, a dificuldade em descentralizar, ou, fazendo-o a incapacidade que tem sido demonstrada em fiscalizar a autoridade delegada. E temos numerosos exemplos destes no Ensino, na Saúde, na Administração do Estado, etc. Enfim uma questão que percorre transversalmente a sociedade portuguesa consequência directa da falta de autoridade que é o problema número um, com que se debate o país. Cito mais uma vez Mouzinho:
“... mais ensejo dera de provar que sabia, custasse o que custasse, obedecer ao que lhe era ordenado e que também sabia, doesse a quem doesse, fazer cumprir as ordens que dava”

Mouzinho anteviu e vislumbrou as reais intenções inglesas relativamente a Moçambique e tomou as suas medidas, exactamente o contrário daquilo que os sucessivos governos de hoje fazem relativamente à União Europeia e sobretudo em relação à Espanha. Agem como se Portugal não tivesse interesses a defender que as restantes potências são todas nossas amigas e que as ameaças são coisas do passado. Não cuidam de ter um sistema de informações minimamente capaz e nem sequer aprendem com os percalços do passado, em que a falsa posição do governo francês perante nós, aquando do conflito da Guiné-Bissau, é um dos exemplos mais recentes.

Muita da configuração actual de Moçambique se deve a Mouzinho, que viu o seu sonho de poder continuar o engrandecimento da província, coarctado pelo decreto lei de 7 de Julho de 1898, que lhe cerceava a autoridade como governador. De imediato se demitiu, demissão apenas aceite depois de algumas tentativas para o demover. A aceitação do “statuos quo” pelo rei, causou alguma mágoa no nosso herói, como é revelado na sua correspondência para o Conde de Arnoso, seu particular amigo e secretário de D. Carlos.

A carta que escreveu ao Presidente do Conselho, Luciano de Castro é mais um documento de grande nobreza de carácter e rara altivez, que contém verdades como punhos, e constitui um libelo contra a política dos mediocres.

Nela Mouzinho desmonta todas as intrigas e conluios de bastidores, daqueles que conspiravam contra a sua pessoa e o bom governo de Moçambique. Mouzinho desafronta-se. Mas a carta é também uma justificação que sentiu dever dar, ao seu Rei e ao povo português que nele tinham confiado, por via da sua renúncia ao cargo.

Numa atitude única, todos os principais colaboradores do Comissário Régio, demitiram-se com ele. A carta era também na declaração de guerra aos políticos e José Luciano de Castro ainda tentou, junto do Rei, levar Mouzinho a Conselho de Guerra. Mas este escusou-se alegando que
“não haveria no exército português oficiais que se prestassem a juizes de semelhante réu”.

Uma última carta escreveu Mouzinho antes de abandonar Moçambique. Dirigiu-a ao Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira, seu sucessor no governo da província.

É mais um notável documento em que vem ao de cima a sua integridade e saber. Nele Mouzinho coloca o novo governador ao corrente da situação do território ao mesmo tempo que se permite dar-lhe alguns conselhos fundados na sua experiência.

E bem se pode dizer que seguiu a ordem de D. João IV ao vice-rei da Índia Conde de Sarzedas:
“Dareis a posse do dito Governo e as notícias e informações que julgardes convenientes ao meu serviço e ao bem e segurança desse Estado”

Da dita carta vamos escolher três trechos que nos dão uma ideia do que era a vida em Moçambique naqueles tempos e das preocupações de Mouzinho.

“Uma das coisas que pior regulada andava nesta Província ... era a administração da justiça aos indígenas, para com quem, segundo a lei vigente, se devia proceder como para os europeus. Era impossível considerar este absurdo, pois cada estado de civilização dum povo corresponde o conjunto de leis por que se deve reger e não há pior ilusão do que supor que pela simples aplicação de leis e regulamentos inadequados se passa do estado de selvajaria para o de civilização completa”.

Este trecho do final do século XIX traz-nos duas reflexões apropriadas para o inicio do século XXI, uma de ordem internacional e outra de âmbito interno. A primeira sendo a de que os países do chamado primeiro mundo, continuam a querer impor a Democracia como ela é entendida no Ocidente, a numerosos povos da África, Ásia e América Latina que não estão preparados para ela, alguns deles vivendo ainda no pós Neolítico ou na baixa Idade Média. E intenta-se tal desiderato tal como se a Democracia fosse mézinha para todos os problemas; quanto à coisa doméstica, semeou-se o país de leis pouco apropriadas aos usos e às gentes, eivados de idealismos bacocos, baseados na “Teoria do Bom Selvagem” e atravessadas por utopismos fora das realidades originadas nos sobreviventes do Maio de 68, em França e afins. Piorou-se o quadro desantorizado as polícias e permeabilizando o acesso à magistratura de uma quantidade de meninos e meninas que ainda nem sequer sabem o que é a vida. Isto claro, sem falar da organização superior da justiça que origina conflitos de competência constantes, resultando de tudo isto uma barafunda geral, a desmotivação dos agentes, a paralisia dos tribunais e o facto de ninguém, aparentemente, em Portugal se preocupar com o fazer-se justiça e com a prevenção do crime, e satisfazer-se apenas com o exercício deletério do Direito.

Mouzinho tinha razão, mas também ninguém lhe ligou.

“Os piores inimigos para a sua administração nesta Província são os especuladores que sem sacrifícios de capitais, que não têm, nem trabalhos, e fadigas em que não são capazes de se meter, pretendem enriquecer à custa da Província, que nada lhes deve, alheando-a a estrangeiros cujos capitais conseguem assim aliciar para á sombra deles, em jogos de bolsa e golpes de agiotagem, adquirirem a cobiçada riqueza”.

A que se pode acrescentar uma outra frase do grande apóstolo da Índia, S. Francisco Xavier:
“No acabo de admirar los nuevos modus y tiempos, sobre las comunes y regulares que há inventado la avaricia de conjugar este verbo – Rapio, Rapies”

Que dizer de tudo isto? Não lhes sugere uma grande similitude com o presente?

Não queria deixar de vos contar um episódio – também ele revelador do espírito de Mouzinho -, que se passou com o consul alemão em Lourenço Marques. Este, que nos era hostil, ao assistir à passagem de uma procissão, enterrou o chapéu na cabeça.

Tal facto originou o apedrejamento das janelas do consulado por uma multidão irada. Perante a queixa do cônsul, o governo português enviou a Mouzinho instruções para que fosse apresentar desculpas, o que este depois de informado de como as coisas se passaram se recusou a fazê-lo enviando o seguinte telegrama: “Cumprirei as ordens de V. Exª, mas perante tanta inépcia e cobardia, peço a minha demissão”. Intervém o Rei e pede a Mouzinho o sacrifício de cumprir as instruções.

E em atenção ao soberano, Mouzinho, no dizer de Aires de Ornelas “... cumpriu a ordem governamental por modo tão insólito que as desculpas mais foram manifestações de altivez”.

Mas quando dias depois, Mouzinho embarcava em direcção ao Norte despediu-se afectuosamente de todo o corpo consular, excepto do consul alemão que deixou de mão estendida.

De facto é preciso ter brio e é preciso ter vergonha.

Um último aspecto que Mouzinho focou ao seu sucessor:
“As companhias recrutavam-se de indígenas vadios, agarrados a cordel em Angola e na própria província. O resultado de tam mau recrutamento era serem os soldados da guarnição uma quadrilha de bêbados miseráveis, sem instrução nem disciplina de espécie alguma, pessimamente armados e equipados e fardados à europeia!... e é indispensável que o Governo desta vez seja honesto, cumpra o contrato doutra forma nunca terá recrutas em termos”


Conclusão

“Verba vólant
scripta mánent
exempla traúnt”
Aforismo Latino

“As palavras voam
os escritos permanecem
o exemplo arrasta”
Passou a ser chavão dizer-se que já tudo foi dito sobre Mouzinho. E se calhar foi. As pessoas dizem isto para tentar encontrar algo original para afirmar ou como desculpa para o não terem feito.

E, no entanto, Mouzinho é uma personalidade tão rica e a sua vida encerra tão grandes exemplos e virtudes, e ensinamentos que falar dele, em diferentes épocas, não é falta de imaginação nem recordação de passadesimo serôdio. Não. Trata-se de rejuvenescer conceitos de sempre – por intemporais -, e de alimentar a alma com a comida do espírito, que é uma necessidade intrinsecamente humana. E de apontar o caminho aos mais novos.

A vida de Mouzinho é uma bíblia. É uma bíblia de pundonor, de nobreza, de altos valores políticos, morais e sociais e de bem fazer. Por isso os seus escritos ficam e o seu exemplo arrasta.
É mister terminar.

Pretendia fazê-lo, porém, deixando uma certeza e fazendo um apelo. A certeza é esta: Mouzinho continuará vivo e lembrado através dos tempos e dos seus detractores e dos maus políticos, ninguém falará deles nem fixará o nome, a não ser para serem apostrofados.

Quanto ao apelo, ele prende-se com o pagamento de uma divida que a nação portuguesa tem para com Mouzinho e sua esposa e que é esta: cumprir o seu desejo de ser sepultado no Mosteiro da Batalha, onde foi baptizado, desde que sua mulher pudesse ficar a seu lado.

Creio que os seus familiares não se iriam opor a semelhante desígnio que devia ser de todos nós.
E se a Mouzinho assiste todo o direito de repousar na Batalha, não menos direito goza sua mulher de o acompanhar.

D. Maria José Gaivão Mouzinho de Albuquerque foi esposa amantissima e dedicada que sempre acompanhou seu marido mesmo nas condições mais difíceis, chegando a chefiar um hospital de campanha no Chibuto onde orientou e ajudou nos cuidados a prestar aos feridos. É pois digna de ombrear com as várias Filipes de Vilhena e Marianas de Lencastre, da nossa História. E seria também um tributo que a Nação prestava a todas as mães de Portugal que seguravam a família na retaguarda, quando a diaspora portuguesa espalhou, durante seis séculos, os seus filhos e maridos pelos quatros cantos do mundo.

E como epitáfio para o herói, sugiro a ideia do seu íntimo, Conde de Aruoso que defendeu para tal, no Parlamento, as palavras de D. Carlos, quando soube da sua morte:

“De Mouzinho ficará sempre a memória do homem que prestou ao País e ao seu Rei os mais relevantes serviços”

Cumulativamente, dever-se-ia transformar a quinta de Mouzinho, na Batalha num Museu. E quanto à sua estátua que desde 1940 se encontrava uma praça de Lourenço Marques, já ouvi dizer que se deveria transportá-la também, para a Batalha.

Permito-me discordar, por duas razões principais: primeiro porque Mouzinho também pertence à História de Moçambique, território que a ele muito deve e que, sem a sua acção, não seria o que é hoje. Por isso é importante que Mouzinho lá fique, para lembrar ao povo moçambicano, isso mesmo. Por outro lado, porque é do nosso interesse. Apaziguados eventuais fricções da História, importante se torna que ambos os povos, que em tempos formaram uma mesma nação, tomem consciência do que os une de molde a perspectivar um melhor entendimento e cooperação futura. E se se pretender ter uma estátua de Mouzinho, pois que se faça outra.

Mouzinho pode ombrear, salvo as distâncias da canonização, com D. Nuno Álvares Pereira.

Fica bem a cavalaria ao lado da infantaria. Como devem estar os verdadeiros camaradas de armas.
Para terminar,e sobre este assunto, bem gostaria de lançar o grito de Mouzinho, ao quadrado, quando regressava da carga de cavalaria em Macontene: “Rapazes esta partida está ganha; viva sua Majestade El-Rei!
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[1] O cavalo do Coronel Galhardo, Comandante da coluna norte, chamava-se “Mike” e tinha sido comprado por Aires de Ornelas, no Transval, por 35 libras. Este magnífico animal veio a passar para a posse de Mouzinho que com ele fez toda a campanha dos Namarrais.


CRONOLOGIA

1855 – Nasceu Mouzinho de Albuquerque na Quinta da Varzea, freguesia de S. Maria da Vitória no concelho da Batalha, a 12 de Novembro.

1871 – A 23 de Novembro, com 16 anos, assenta praça como soldado no Regimento de Cavalaria 4; frequenta de seguida a Escola Politécnica e a Escola do Exército, onde concluiu o curso de cavalaria.

1876 – Promovido a alferes graduado; continua a estudar em Coimbra, nas faculdades de Matemática e Filosofia, sendo transferido para o Regimento de Cavalaria n.º 6

1884 – Promovido a Tenente, em 31 de Outubro, e no mesmo mês nomeado regente de estudos no Real Colégio Militar.

1886 – Embarca para a Índia, a fim de fiscalizar o caminho de ferro e o Porto de Mormugão, tenso sido graduado em capitão. Durante cerca de três anos foi Secretário-Geral do Governo da Índia.

1890
- Nomeado governador do distrito de Lourenço Marques, em 10 de Julho.
- Promovido a capitão em 12 de Setembro.

1892
– Regressa ao Reino em Abril;
- Colocado no Regimento de Cavalaria n.º 8, em Castelo Branco e depois no Regimento de Cavalaria n.º 4 onde ficou até Janeiro de 1895.

1895
– 2 de Fevereiro – combate de Marracuene;
- Apresenta-se no Regimento de Lanceiros n.º 1, em Janeiro, a fim de comandar o esquadrão expedicionário a Moçambique, para onde embarca a 15 de Abril;
- Mouzinho chega em Maio, a Moçambique;
- Setembro, combate de Magul (275 portugueses contra 6500 vátuas);
- 7 de Novembro combate de Coolela (300 portugueses contra 6000 vátuas);
- 26 de Dezembro, acção sobre Chaimite;
- 25 de Novembro, - nomeado Comissário Régio;
- 10 de Dezembro, nomeado Governador Militar do Distrito de Gaza.

1896
– Fevereiro e Março, pacificação do Maputo;
- 19 de Outubro, combate de Mujenga;
. Promovido por distinção a Major, em 17 de Março;
- Nomeado governador de Moçambique, por decreto de 25 de Novembro.

1897
– Negoceia com o Transval a primeira convenção sobre o trabalho emigrante;
- Desembarca em Lisboa a 14 de Dezembro onde foi recebido festivamente e, mais tarde, no Porto, a 16 de Janeiro nomeado Ajudante de Campo honorário; convidado para o Conselho de sua Majestade; Aio do Príncipe Real D. Luis Filipe e oficial mor da casa Real, por inerência.

1898
– 23 de Julho escreve uma carta ao presidente do Conselho de Ministros, conselheiro José Luciano de Castro, solicitando a exoneração de Comissário Régio em Moçambique;
- 30 de Julho escreve uma carta ao seu sucessor Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira no governo de Moçambique, expondo a situação da Província;
- Decreto de 7 de Julho, do Ministério da Marinha e Ultramar que restringia as funções dos Comissários Régios;
- Exonerado do Comissário Régio em Moçambique, por decreto de 30 de Julho.
1901
– Promovido a tenente coronel do estado-maior;
- Escreve a célebre carta ao Príncipe D. Luis Filipe de Bragança.

1902- Faleceu a 8 de Janeiro, com 46 anos.




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