quarta-feira, 24 de julho de 2013

O esplendor de Lisboa



Depois de ter conquistado um Patriarca para Lisboa, D. João V encomendou aos melhores artífices de Roma um pequeno Vaticano para o seu palácio. Hoje nada resta da Basílica Patriarcal, destruída pelo terramoto de 1755, mas a capela de São João Baptista, que agora reabriu restaurada, oferece um olhar sobre o esplendor perdido. António Filipe Pimentel, director do Museu Nacional de Arte Antiga e comissário da exposição ‘A Encomenda Prodigiosa’, explica as jogadas do ‘Magnífico’.

Durante escassos três anos esteve Lisboa no esplendor máximo que D. João V sonhou ao longo do seu reinado. Para cumprir os seus desígnios, o monarca convocou os melhores artífices do mundo – os que trabalhavam para o Vaticano. O processo de engrandecimento da capital – e do prestígio do Rei – passou pela elevação da capela do Palácio da Ribeira a Basílica Patriarcal – algo que só existia em Roma e Veneza, onde estavam sepultados os apóstolos S. Pedro e S. Marcos.

É essa história de ascensão diplomática que reposicionou Portugal no xadrez das nações católicas que se narra na exposição ‘A Encomenda Prodigiosa – Da Patriarcal à Capela Real de São João Baptista’. A mostra está dividida em dois pólos, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) e na Igreja e Museu de São Roque, e pode ser visitada até 29 de Setembro.

A 1 de Novembro de 1755, o grande terramoto destrói toda a zona do Palácio da Ribeira e da Basílica Patriarcal, no Terreiro do Paço. Na zona alta da cidade (junto ao actual Bairro Alto), a réplica em miniatura da basílica, a capela de São João Baptista, subsistia incólume ao cataclismo. Instalada na Igreja de São Roque, a casa mãe dos jesuítas, e recentemente restaurada, a capela permite ter ‘um cheirinho’ da magnificência da desaparecida Patriarcal junto ao rio. António Filipe Pimentel, director do MNAA e comissário científico da exposição (que tem curadoria também de Teresa Vale) explicou ao SOL o que esteve por trás desta encomenda. Muito mais do que o amor à arte ou a Deus, este projecto artístico ambiciosíssimo – e numa escala só possível para uma capital de império que vivia do ouro do Brasil – teve como enquadramento uma estratégia política absolutista. Mais de 350 peças, algumas delas sumptuosas, estão reunidas nos dois pólos da exposição. Na primeira semana aberta ao público (de 18 a 26 de Maio), o MNAA recebeu mais de 10 mil visitantes.



Houve algum pretexto para fazer esta exposição agora? Há alguma data?
É um tema muito forte e tem por trás a investigação que está a ser desenvolvida em torno da capela de São João Baptista, da qual sou o coordenador científico. A determinado ponto da investigação entendemos que não é possível perceber a encomenda da capela desenquadrada do que foram as estratégias de D. João V no âmbito do desenvolvimento de uma arte de corte cosmopolita e todos os mecanismos diplomáticos associados a isso, de que fez parte a mobilização de Roma como palco diplomático europeu. A capela de São João Baptista (na Igreja de São Roque) não é mais que a extensão da Basílica Patriarcal, com a grande vantagem de ser hoje a materialidade subsistente, porque é aquilo que o terramoto poupou e que nos permite compreender o que era a Basílica Patriarcal. O título ‘Encomenda Prodigiosa’ significa excepcional em quantidade e qualidade e é na verdade um conjunto de três encomendas: a Basílica Patriarcal com o seu revestimento e com a grande reforma final da década de 1740, a encomenda da capela para São Roque, em 1742, e, em 1744, a encomenda do tesouro da capela de São João Baptista. Tudo junto dá esta escala prodigiosa que mobilizou os melhores artesãos de Roma de todos os domínios. E se pensarmos que Roma era o?grande palco diplomático da Europa católica e que tem um tipo de vida onde o beau monde frequenta as oficinas dos artífices, este overbooking de todas as oficinas a trabalhar para o Rei de Portugal dava obviamente nas vistas junto de todas as cortes da Europa.

Percebiam que Portugal estava em vias de se tornar uma potência...
Claro. Isto tudo coincide com um período delicado das negociações com Roma e que culminará com o título dado, em 1748, pelo Papa a D. João V e seus sucessores de ‘Majestade Fidelíssima’. E que equipara a Coroa portuguesa às potências?católicas ditas de primeira grandeza, com títulos específicos dados aos seus monarcas: os Reis Católicos de Espanha, os Cristianíssimos franceses e os Imperadores Apostólicos do Sacro Império. E esta encomenda é também uma resposta aos boatos que começam a circular de que os recursos da corte portuguesa não eram tão inesgotáveis assim. O cúmulo de encomendas é um desmentido. E só pela capela de São João Baptista, que é única em termos internacionais, e que felizmente não perdemos, podemos ter uma noção muito aproximada do que significou.

A capela real do Palácio da Ribeira transformou-se em Basílica Patriarcal. Que importância é que isso teve?
A hipertrofia da dignidade litúrgica da Capela Real, elevando-a à dignidade litúrgica de uma Basílica Patriarcal, que se transformou numa espécie de miniatura do Vaticano para uso específico do Rei de Portugal, é um acontecimento extraordinário. D. João V era o único príncipe da Europa a ter uma espécie de Papa como capelão. O Patriarca de Lisboa tinha, como se pode ver na exposição no MNAA, uma sedia gestatoria, um trono portátil que só é atribuído aos papas.A única diferença é que o Patriarca de Lisboa tem de ser transportado um pouco abaixo do nível dos ombros. Na exposição podemos ver um vídeo com a chegada do Papa João XXIII a São João de Latrão, que é a sede do bispado de Roma. E a Igreja de São Roque, que era a mais esplêndida igreja de Lisboa, vai funcionar para a Patriacal como São João de Latrão em relação à Basílica de São Pedro. Há um conjunto de privilégios inacreditável. Quando é criado o Patriarcado de Lisboa, na Igreja do Ocidente, só há outros dois: Roma e Veneza. Actualmente na Europa Ocidental só há Veneza e Lisboa.

Qual a importância de Lisboa ter um Patriarca?
É um instrumento político de primeira grandeza. A relação entre a corte portuguesa e a Santa Sé era extremamente conflituosa. Depois da Restauração de 1640 a Santa Sé levou 28 anos a reconhecer a independência de Portugal, só o fez depois de Espanha, e chegou a haver corte de relações diplomáticas entre os dois Estados durante 12 anos. Ter um Patriarca, que é uma espécie de Papa, dá ao Rei a possibilidade de provocar um cisma. Reverteu o equilíbrio das relações políticas entre os estados.

Como é que D.João V conseguiu reverter a situação?
A batalha do Cabo de Matapão, em 1717, é o ponto de viragem. Hoje em dia as pessoas têm pouca noção, mas na altura teve uma extrema importância. O Papa pede ajuda aos reis de Espanha, França e Portugal contra a iminente invasão turca sobre Veneza. E só o Rei português responde, enviando uma esquadra que destrói por completo a armada turca, no sul da Grécia, salvando Veneza. Foi uma operação notável. E faz de D. João V um herói. É claro que nesta altura já estava em negociações o Patriarcado de Lisboa, que é um título honorífico, mas agora havia um pretexto óbvio para o conceder. O retrato de D. João V com a batalha do Cabo de Matapão em fundo é uma das peças de excepção da exposição. Dá conta da importância da batalha no reinado do D. João V. Tinha sido localizado na embaixada do Brasil em Haia na década de 60, mas depois tinha-se perdido o rasto e nós localizámo-lo agora no Brasil e trouxemo-lo.

E há a decisão de criar a Basílica Patriarcal a partir da capela real em vez de se fazer uma de raiz. Isso tem consequências políticas?
Uma capela tem sempre uma presença muito forte no antigo regime. O que o Rei faz é desenvolver esse lado eclesiástico da corte, dando-lhe uma escala completamente insólita como factor de afirmação a um tempo internamente, como reforço da sua legitimação e exaltação em termos nacionais, e internacionalmente, elevando essa visibilidade que é dada a partir de Roma. Aliás, na última sala da exposição temos o dicionário enciclopédico de Moreri, que é uma extensão da Enciclopédia de Diderot, com uma entrada sobre a capela real de Lisboa, falando nela como uma das mais magníficas igrejas da Europa do seu tempo. Ou seja, tinha-se conseguido entrar no mundo global, no Google.

E a nível interno?
Foi importantíssimo. Um Rei não está sozinho no cenário, precisa da nobreza. Mas a sociedade do século XVIII é muito mais conflituosa do que nós vemos nos quadros, onde tudo parece ordenado. Há uma conflitualidade permanente que chega ao ponto de haver greves de cortesãos. Por exemplo, quando chega a Rainha D. Mariana de Áustria em 1708 para casar com D. João V a Corte está em greve e só há três senhoras a recebê-la. O facto de o Patriarca ter que ter uma corte também, com grande pompa, que chega a ter 400 pessoas, e que copia a organização da corte pontifícia, permite empregar os filhos segundos da grande nobreza e, de certa forma, era uma maneira de apaziguar a nobreza sem cedências explícitas. Até nisso ele é hábil, compensa a nobreza sem lhe dar poder. Não é por acaso que toda a grande nobreza é afastada da governação. D. João V vai rodear-se de uma nobreza de função, ou seja burocratas, humanistas, gente ligada às classes emergentes. O marquês de Pombal é exactamente isso, aliás vai ser embaixador em Viena e em Londres. E o tio, Paulo de Carvalho, era um dos principais da Patriarcal.

A nível estético a criação do Patriarcado é também significativa.
Há um nome fundamental que é o do arquitecto e ourives ao serviço do reino, João Frederico Ludovice. No decurso das encomendas, foi pedida uma auditoria aos gastos, feita pelo representante diplomático português em Roma, e junto com a contabilidade estão igualmente os desenhos de todas as peças. Esse livro, que se perdeu com a fuga da Corte portuguesa para o Brasil em 1808, veio a aparecer no mercado antiquário no século XIX em Londres e foi publicado por um editor de arte muito conhecido então, John Weale. E então o Livro de Esboços de Desenhos da Comissão que se Faz por Ordem da Corte passou a ser conhecido como Álbum Weale e é uma fonte importantíssima para a historiografia. Entre outras coisas, o que existe de fascinante é perceber como há uma orientação estética muito coerente por parte de Ludovice. Ele era também um reputado ourives e chega ao ponto de desenhar as grades da Patriarcal. E os grandes artistas de Roma, como Nicola Salvi, que é o autor da Fontana de Trevi, ou Luigi Vanvitelli viam os seus esboços chumbados por Ludovice, que impunha as suas ideias e desenhos. Era um pouco chocante, só que o Rei de Portugal tinha capacidade para pagar. Na correspondência trocada vê-se que Lisboa está a discutir de igual para igual com os grandes arquitectos e artistas do seu tempo e está a impor-lhes a sua orientação muito mais neoclássica. E há da parte de Ludovice uma coerência total e impressionante.


Fonte: Sol

Sem comentários: