27 março 2017

Eutanásia, aborto e pena de morte

Há quem afirme que é uma contradição, senão mesmo uma hipocrisia, que a Igreja Católica proíba a eutanásia e o aborto voluntário, mas permita a pena de morte, como efectivamente faz o Catecismo da Igreja Católica.

A contradição é apenas aparente porque, como é óbvio, não se pode comparar a vida humana inocente, a que se põe termo pelo aborto e pela eutanásia, com a vida do injusto agressor, quando a sua eliminação é necessária para a legítima defesa do indivíduo inocente, ou da sociedade. Quem aborta, ou pratica a eutanásia, mata um ser humano inofensivo, mas no caso da legítima defesa, da guerra justa ou da aplicação da pena de morte, age-se sempre em defesa pessoal ou social, contra alguém cuja agressão não pode ser evitada de outra forma. Quem, para se defender, abate um injusto agressor, em sentido ético e jurídico não mata, embora cause a morte do autor da agressão.

Esta distinção é essencial para compreender que não há contradição em condenar o aborto e a eutanásia e permitir, mas só em casos muito excepcionais, a pena de morte.
   
Na versão original do Catecismo, lia-se: “reconhece-se aos detentores da autoridade pública o direito e a obrigação de castigar com penas proporcionadas à gravidade do delito, incluindo a pena de morte em casos de extrema gravidade, se outros processos não bastarem” (CIC,1993, nº 2266). Acrescentava-se contudo que “Na medida em que outros processos, que não a pena de morte e as operações militares, bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a paz pública, tais processos não sangrentos devem preferir-se” (CIC, 1993, nº 2267).

Já então se afirmava, expressamente, que a pena de morte só poderia ser legítima “em casos de extrema gravidade” e apenas “se outros processos não bastarem”. Não obstante, muitos fiéis consideraram inadequados estes termos pelo que, na edição seguinte, a pena de morte só é permitida em casos tão excepcionais que, de facto, é praticamente abolida: “a doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor. […] Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu ‘são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes’” (CIC, 1997, nº 2267).

Mas, mesmo restringindo de forma drástica os casos em que é moralmente legítima a aplicação da pena de morte, o CIC não exclui esta possibilidade. Porque o não faz?! Decerto porque, se em caso algum fosse lícita a pena de morte, também não seria eticamente aceitável causar a morte do agressor, na guerra ou em legítima defesa. Sendo lícito que a vítima de um ataque injusto se defenda, também na guerra, mesmo causando, se necessário for, a morte do inimigo, também tem de ser admissível, mas só como último recurso, a pena de morte.

Portugal muito justamente se orgulha de ter sido pioneiro na abolição da pena de morte que, lamentavelmente, ainda vigora em muitos países do mundo. Os fiéis católicos podem ser, a título pessoal, contra a pena de morte, mas também a seu favor, ainda que apenas nas condições que a Igreja exige para que seja moralmente lícita. Também podem optar por não pegar em armas, o que não impede que o seu uso seja eticamente legítimo numa guerra justa. E todos os fiéis, quer sejam ou não objectores de consciência, contra ou a favor da pena capital, deverão respeitar a legítima liberdade dos crentes que defendem a opinião contrária, desde que o façam de forma congruente com a doutrina social da Igreja.

Não há, portanto, contradição entre a proibição da eutanásia, gravíssimo pecado contra o quinto mandamento da lei de Deus, e do aborto voluntário, punido com a pena canónica de excomunhão, e a admissibilidade, em teoria, da pena de morte. Mas como, na prática, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu “são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes” (S. João Paulo II, Evangelium vitae, 56), pode-se dizer que o magistério da Igreja, embora permita a pena capital em casos muito excepcionais, propugna a sua universal abolição. Com efeito, “se processos não sangrentos bastarem para defender e proteger do agressor a segurança das pessoas, a autoridade deve servir-se somente desses processos, porquanto correspondem melhor às condições concretas do bem comum e são mais consentâneos com a dignidade da pessoa humana” (CIC, nº 2267).

P. GONÇALO PORTOCARRERO DE ALMADA


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