23 outubro 2017

Mentiras da História de Portugal - A lenda negra de Carlota Joaquina

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Li em tempos As Lobas do Escorial, de Michel del Castillo, verdadeiro novelo erótico-paródico e dei-me conta das flagrantes similitudes com muita da panfletagem posta a circular nas décadas de 1830 e 1840 contra uma das mais inteligentes, argutas e politizadas mulheres de finais do Antigo Regime em Portugal e Espanha. Carlota Joaquina, infanta de Espanha, Princesa Real de Portugal e, depois, Rainha de Portugal, uma das mais ridicularizadas e caricaturadas figuras desse extraordinário momento de transição da ordem antiga para o Liberalismo, merece sem dúvida um lugar destacado na história da difamação. Não obstante terem sido impugnadas as lendas e acintes contra ela postos a circular por uma sub-literatura inquinada a extremos de pornografia - vide Sara Marques Pereira, D. Carlota Joaquina e os Espelhos de Clio, Lisboa, Livros Horizonte, 1999 - persiste a lenda de uma mulher desbragada, desequilibrada, presa de furores de uma Messalina, matéria quente que comprova o sucesso antecipado dos enredos baixos; espelho, afinal, da irresistível atracção que as pessoas vulgares têm pelo sórdido.

Conhecidas são as Cartas Inéditas de Carlota Joaquina, editadas por Francisca Nogueira de Azevedo. Ali, não há vislumbre de loucura, de desequilíbrio nem qualquer palavra que indicie o estendal de imundície que logo se instituiria.

Tratando-se de uma das principais protagonistas da intriga política que culminaria com a invasão de Portugal e Guerra Civil entre legitimistas e pedristas, sempre me questionei sobre o lugar e o papel de Carlota Joaquina nesse crisol de ódios caseiros [inspirados e pagos de fora] e que culminou com a instauração de uma nova ordem política na década de 1830. Não, uma figura insignificante, medíocre e torpe não poderia ter alcançado o lugar que Carlota Joaquina ocupou ao longo de quase duas décadas. O ódio contra ela foi crescendo, atingindo culminâncias após a sua morte e continuando a acastelar-se de anedotas e piadas ao longo de um século - vide de Francisco de Assis Cintra, Os Escândalos de Carlota Joaquina, 1934; vide Laurentino Gomes, 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil, Rio de Janeiro, Planeta, 2007 - a tal ponto que se converteu em anexim do partido derrotado. O século XIX foi particularmente cruel com as mulheres - que haviam dominado o século XVIII - e a ordem burguesa triunfante tratou de as reduzir a mínimos de visibilidade, inteligência e importância, pelo que Carlota Joaquina - por ser mulher, por ser política, por ser tenaz e, também, por ser espanhola - reuniu o complexo de medos e preconceitos de uma nova sociedade.

A lenda negra de Carlota Joaquina tem por promotor um tal Jose Prezas, aventureiro espanhol que em 1808 se insinuou junto da Corte e passou a ocupar funções de secretariado da então Princesa Real no Rio de Janeiro. Tratava Prezas de todas as matérias atinentes à relação de Carlota Joaquina com a agitada vida da corte espanhola, num momento em que se iniciava em Espanha - por força da aliança com Napoleão, logo transformada em ocupação francesa - uma sangrenta luta pelo poder. Carlota Joaquina tinha ambições e estava decidida a jogar toda a sua capacidade na ocupação da regência espanhola. Era uma ardente defensora a ordem antiga, mas temperada pela leitura e alguma curiosidade pelo Iluminismo católico. Ferozmente anti-revolucionária, não era contudo uma imobilista. Na sua correspondência evidencia-se a capacidade de procurar compreender o que estava em curso na Europa pós-1789, havendo até na sua correspondência curiosas notas e reflexões sobre a possibilidade de dominar o curso dos acontecimentos por meio de concessões negociadas com sectores aberturistas do Antigo Regime e com os homens de "ideias avançadas" (liberais). Não deixa, porém, de ser uma evidência que era uma fiel depositária de um conceito de ordem política centrada na Coroa, uma católica devota e uma inimiga declarada de forças obscuras cuja menção se nos afigura desnecessário referir. Ora, entre 1808 e 1812 (Cortes de Cádis), Prezas foi o confidente da Princesa Real. Em Cádis decidiu-se que a regência passaria para um orgão colegial - Conselho de Regência - e não para um Príncipe/ Princesa de sangue, pelo que Carlota Joaquina abandonou as suas pretensões. Prezas, subitamente desempregado, passou a exercer chantagem sobre a sua benfeitora, pedindo-lhe uma pensão por serviços prestados. Carlota Joaquina sacudiu a criatura, não temeu as ameaças. De secretário, Prezas transformou-se em inimigo e partiu, convertendo-se em apóstolo das "novas ideias", coisa não rara noutros momentos da história, quando rancores, ódios, invejas comezinhas se coroam de princípios para melhor se justificarem. Assim foi com Junqueiro contra D. Carlos e até com Herculano contra o Portugal Antigo.

A obrazinha de Prezas seria publicada em França em 1827 (Memorias secretas de la Princeza del Brazil) pelo editor Carlos Lavalle e Sobrinho. Brest era, na França que antecedeu a Revolução de Julho (1830), um viveiro de imprensa anti-monárquica. A edição das Memórias Secretas - correspondência apócrifa do punho de Prezas - transformou-se num dos estandartes dos "exilados". Paga por Mendizábal, foi acolhida com grande júbilo. Não se compreende como D. Pedro, filho de Carlota Joaquina, pôde dar assentimento a tal repugnante ultraje à memória da sua mãe, entretanto já falecida. Como sempre digo a um bom amigo, a política é coisa perigosa como repugnante - um Minotauro sem alma e sem princípios - mas há limites para a indecência.

Miguel Castelo-Branco


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