sexta-feira, 8 de novembro de 2013

EÇA DE QUEIROZ ESMIÚÇA O REPUBLICANISMO – PARTE I

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Recolha de textos: Miguel Villas-Boas *

Eça de Queiroz, para além de génio literário foi sem dúvida o maior “retratista” social e político do séc. XIX. Com a sua ironia elevada conseguiu descrever in «Novos Factores da Política Portuguesa», nas «Farpas» e nalgumas cartas pessoais, como seriam pelos menos os 40 anos vindouros e lançou bases para a percepção de muito do que hoje o nosso amado País atravessa, prevendo assim, com a maior das infalibilidades, o futuro. Sobretudo, nos «Novos Factores…», assinando como “um espectador” – que só poderia ser apelidado de “atento” – o Monárquico Eça acertou em toda a linha sobre o desacerto que traria uma revolução republicana.
N’As Farpas, Eça de Queiroz discorre sobre os mais variados assuntos, mas tendo na mira, sempre com especial dedicação, os políticos e a política como podemos constatar nestas breves transcrições:
«- E a que se chama política, meu amigo? Tenho-lhe ouvido…
- A política é uma ocupação dos ociosos, uma ciência dos ignorantes, uma riqueza dos pobres e uma fidalguia dos plebeus. – Reside em S. Bento…»
«- E não há o que chamamos homens práticos?
- Sim, desse modo se denominam os políticos impossibilitados pela inépcia de decorarem o enunciado de uma teoria. Estes sujeitos não falam, nem escrevem: meneiam a cabeça, e de quando em quando – assoam-se! São muito respeitados.»
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Mas foi, de facto, nos «Novos Factores da Política Portuguesa» que Eça de Queiroz desconstruiu o incipiente republicanismo e o partido que o advogava, fazendo um retrato claro e contundente desde a verde existência da doutrina e dos seus professos:
«Mas se fora das regiões da Política, na massa geral da Nação, o ultimatum não logrou produzir um movimento que viesse trazer transformações essenciais à nossa vida administrativa e económica, sucedeu que, dentro dessas próprias regiões da Política, esse mesmo ultimatum, e as manifestações tumultuárias que o acompanharam, vieram alterar o equilíbrio dos elementos regulares com que a Política jogava, fazendo aparecer nela elementos novos, novos factores, com que é forçoso de ora avante contar, e que, coisa estranha!, fazem o Portugal de 1890 politicamente diferente do Portugal de 1889. É esta nova situação que convém estudar com clareza e franqueza.»

«Estender sobre ela um véu pudico, disfarçar-lhe discretamente, por falsas e injustificáveis conveniências públicas, os perigos que ela contém, mão a querer dissecar abertamente com o temor de patentear realidades desagradáveis, seria o mesmo que impedir uma cura ainda possível pelo desejo de não aludir a um mal manifestamente certo, seria um crime de leso patriotismo.»

«O Partido Republicano não é certamente de criação recente. Desde 34, desde 20, sempre em Portugal existiram republicanos e jacobinos. Foi possível porém durante muito tempo contá-los, como se diz, pelos dedos de uma só mão. Eram ideólogos isolados, um pouco vaidosos do seu isolamento, vaidosos sobretudo da sua independência e isenção, e da superioridade intelectual que as suas ideias lhes davam ou lhes pareciam dar, de resto universalmente respeitados, e respeitadores eles mesmos do regímen sob que viviam e de quem por vezes aceitavam empregos.

O primeiro ensaio de republicanismo, com visos de organização, foi devido, aí por 1867 ou 68, a um guarda-livros da antiga Casa Bertrand, moço excelente, mas fanático, que consumiu o seu pecúlio e a sua saúde no empenho de fundar um clube, menos como núcleo de acção que como núcleo de propaganda. Esse clube (se nos não falha a memória) chegou a funcionar numa casa da rua do Príncipe, e a ele pertenceram alguns homens hoje ilustres nas letras, e mesmo famosos pelas suas ideias autoritárias. De resto nesse clube tratava-se mais de estimular a fraternidade humana, de libertar as raças oprimidas, etc., do que propriamente de abalar o poder que residia na Ajuda. Era um clube de humanitários e de idealistas, de onde apenas saiu um acto prático, as conferências chamadas do Casino, instrumento de propaganda que tinha naturalmente mais de literária do que de política. (…) A imprensa de oposição exibiu a costumada indignação liberal; o Sr. Dias Ferreira fez uma interpelação ao ministério; e não se falou mais nas conferências do Casino, de que apenas resta como vestígio uma verdadeira jóia de crítica histórica, um folheto do Sr. Antero de Quental, hoje muito raro, sobre a Decadência dos Povos Peninsulares. O clube da rua do Príncipe morreu de inanição, e este ensaio jacobino fundiu-se ou perdeu-se no movimento socialista que, aí por 1871 e 72, ainda sob a iniciativa do Sr. Fontana e de outros, englobou em si uma considerável porção da classe operária de Lisboa. Esse movimento socialista, que era uma ramificação entre nós da famosa Internacional, fracassou quando essa sociedade, por motivos que não vem para aqui compendiar, perdeu a sua acção sobre a massa dos trabalhadores europeus. Depois disso a corrente republicana, que várias causas tinham continuado a desenvolver surdamente, aflorou de novo à superfície e fez sentir a sua acção por ocasião do centenário de Camões. E finalmente a sua entrada como partido organizado na sociedade política pode ser datada da questão de Lourenço Marques.

Não tomámos a pena para fazer a história, ainda pouco acidentada, do Partido Republicano. Essa história, por enquanto, reduz-se principalmente a números. Um deputado republicano por Lisboa há quinze anos não reuniria cem votos. Nas últimas eleições os republicanos tiveram alguns milhares de votos. E estes milhares de votos têm uma significação grave, não tanto por virem do apoio progressista (ainda que este apoio é também significativo e sintomático), mas por virem de uma forte massa de eleitores independentes, pertencendo pela maior parte às classes liberais e à classe comercial, que até aqui se abstinham de votar.
Um tal desenvolvimento de republicanos é obra recente destes últimos anos. E a sua causa tem sido simples e unicamente o descontentamento: isto é, o Partido Republicano tem-se alastrado, não porque aos espíritos democratizados aparecesse a necessidade de implantar entre nós as instituições republicanas, como as únicas capazes de realizar certos progressos sociais – mas porque esses espíritos sentem todos os dias uma aversão maior pela política parlamentar, tal como ela se tem manifestado, com o seu cortejo de males, nestes derradeiros tempos.

O Partido Republicano em Portugal nunca apresentou um programa, nem verdadeiramente tem um programa. Mais ainda, nem o pode ter: porque todas as reformas que, como partido republicano, lhe cumpriria reclamar, já foram realizadas pelo liberalismo monárquico. De sorte que se vai para a república ou se tende para ela, não por doutrinarismo, por urgência de mais liberdade e de instituições mais democráticas, mas porque numa já considerável parte do País se vai cada dia radicando mais este desejo: antes qualquer outra coisa do que o que está!

Esta é a mais recente e desgraçada fórmula política da Nação. É a fórmula que se ouve repetida por toda a parte onde dois homens se juntam a comentar as coisas públicas. Ora que pode ser essa outra coisa? Não pode ser o governo pessoal, fórmula para que apenas se inclinam alguns espíritos superiores, mas odiosa à generalidade da Nação, de todo democratizada, ou antes irradicavelmente impregnada de liberalismo; tem pois, na ideia dos descontentes, de ser a república, uma república, que, eliminando pelo mero facto do seu triunfo todo o pessoal do parlamentarismo e as suas práticas, proceda, sem desatender os interesses conservadores, a uma reorganização administrativa e económica da Nação. Essa reorganização parece-nos, a nós conservadores, que poderia ser realizada dentro da monarquia. (…)

(…) Cremos que ninguém, com uma clara inteligência das coisas, negará ser esta a corrente de ideias ou de impressões que tem desenvolvido o Partido Republicano. Do seu mais recente e inesperado engrossamento neste último ano houveram causas mais directas e mais especiais, internas e externas. Das internas a maior foi sem dúvida o último período da administração progressista. Não queremos por modo algum nestas páginas da REVISTA, onde só podem ter cabimento as apreciações genéricas de ideias, doutrinas ou movimentos sociais, fazer acusações específicas a grupos políticos. Mas ninguém hoje contesta, mesmo dentro das fileiras progressistas onde preclaramente sobram os homens sinceros e de bem, que os erros dessa administração foram fatais ao sistema parlamentar e à monarquia que é a sua expressão suprema.
A parte sã da Nação ficou seriamente desgostosa. E as lamentáveis desordens parlamentares desse triste ano político, as violentíssimas e desmandadas polémicas, as mútuas e terríveis recriminações com que, obcecados pela paixão, os partidos se feriam uns aos outros na sua honra, deixaram no País, que assistia espantado a uma tal lavagem pública de roupa suja, o sentimento desalentado que ele exprime por esta fórmula: – Tão bons são uns como outros! É esta uma outra das recentes e desgraçadas fórmulas da opinião pública em Portugal. Ora se, dos que estão, tão bons são uns como os outros no sistema parlamentar – para onde ir, para que apelar? Naturalmente para a república e para os homens novos e puros que ela possa trazer.

Uma outra causa exterior que veio concorrer para o engrossamento do Partido Republicano foi a revolução do Brasil. Feita por uma raça filha da nossa, que fala a nossa língua e tem tantos interesses ligados aos nossos, e feita aparentemente com uma cordura, uma generosidade, uma ordem que espantou (e enganou) o mundo, esta revolução veio entre nós, de mil maneiras indirectas, desenvolver o sentimento republicano; já provando como sem desordem social se pode melhorar um regímen político; já mostrando tentadoramente a que fastígios de poder pode galgar, numa manhã, qualquer obscuro articulista ou qualquer obscuro professor; já dando a esperança de um forte apoio moral e (porque o não diremos?) de um forte apoio material. A revolução do Brasil tranquilizando os ordeiros, excitando os ambiciosos, e dando confiança a todos pela esperança de apoio e recursos positivos – foi um golpe que das instituições brasileiras repercutiu indirectamente sobre as nossas instituições.
Não menor acção estimuladora trouxe aos nossos republicanos a consolidação da república em França, tão ameaçada, ainda antes das eleições de Setembro, pela coligação monárquico-cesarista. A França, pelo simples facto de ser república e como tal prosperar, é hoje o mais poderoso instrumento de propaganda republicana entre os povos latinos. Não se reflecte bastante que às qualidades da sua raça, não à forma das suas instituições, deve ela a sua prosperidade; e que a Exposição seria tão brilhante sob o reinado de Filipe V, como foi sob a presidência de Carnot. O que se vê é a República robustecendo o exército e a armada, construindo enormes obras de defesa, reorganizando superiormente os seus novos domínios, alargando imensamente a instrução, favorecendo o movimento dos negócios a ponto de tornar o próprio capital republicano, mantendo admiravelmente a ordem, e, apesar da sua democratização, conservando todas as elegâncias da vida e da sociedade. Tudo isto se atribui à república, quando é unicamente obra da França.

Finalmente entre as causas estranhas se pode contar o ultimatum do dia 11, que, se não arrancou o País à sua apatia, lhe deu subitamente o sentimento mais claro, e por assim dizer agudo, da sua própria fraqueza e desorganização; fraqueza e desorganização que, aparecendo dentro deste regímen, podem ser (e são) obra de certas fatalidades, mas são evidentemente também obra desse regímen. «Aqui está onde nós chegamos!» foi então a dolorida exclamação que resumia o sentir público.
Assim, progressivamente, se tem ido o Partido Republicano recrutando entre todas as classes e todas as profissões, a advocacia, a magistratura, o professorado, o comércio, e mesmo a propriedade rural, pela acção lenta de causas diferentes, das quais a maior incomparavelmente, e a única que incessantemente opera, é a de um forte descontentamento político.
E o que torna este descontentamento político tanto mais vivo, e por assim dizer activo, é que ele tem o estímulo constante de um imenso descontentamento individual, nascido das dificuldades de vida que cada um experimenta. É a nossa pobreza geral que complica singularmente a nossa crise política. Em casa onde não há pão todos ralham e todos têm razão – porque é deste modo que o provérbio deve ser entre nós emendado. (…) A oposição a um governo ou a um regímen nunca toma com efeito um carácter impaciente, violento e destrutivo quando cada um tem pão bastante na prateleira ou um saldo favorável no seu banco. Todo o regímen parece bom, pelo menos perfeitamente tolerável, ao pai de família que se sente na abundância. A mudança de regímen, e as perturbações sociais que lhe vêm inerentes, só lhes inspiram então inquietação, por poderem alterar ou anular as condições favoráveis em que a sua prosperidade se produziu. Entre nós é justamente o contrário que sucede. Ninguém vive na abundância e todos se encontram em dificuldades. (…) Todos sofrem; e ainda que muitos só se deveriam queixar da sua falta de iniciativa, de persistência, e mesmo de coragem civil, todos à uma se voltam contra um regímen que eles consideram como o causador de todos esses males públicos de onde datam os seus males particulares. Em todas estas classes se encontra com efeito a mesma opinião expressa pela mesma fórmula: -isto assim não pode continuar! Isto é a desorganização administrativa, política e económica.»

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Num texto publicado no jornal “Distrito de Évora”, em 1867, Eça de Queiroz havia já analisado o estado do País apontando as falácias da política:
«O Que Verdadeiramente Mata Portugal! O que Verdadeiramente nos mata, o que torna esta conjuntura inquietadora, cheia de angústia, estrelada de luzes negras, quase lutuosa, é a desconfiança. O povo simples e bom, não confia nos homens que hoje espectaculosamente, estão meneando a púrpura de ministros; os ministros não confiam no parlamento, apesar de o trazerem amaciado, acalentado com todas as doces cantigas de empregos, rendosas conezias, pingues sinecuras; os eleitores não confiam nos seus mandatários, porque lhes bradam em vão: «Sede honrados», e vêem-nos apesar disso adormecidos no seio ministerial; os homens da oposição não confiam uns nos outros e vão para o ataque, deitando uns aos outros, combatentes amigos, um turvo olhar de ameaça. Esta desconfiança perpétua leva à confusão e à indiferença. O estado de expectativa e de demora cansa os espíritos. Não se pressentem soluções nem resultados definitivos: grandes torneios de palavras, discussões aparatosas e sonoras; o país, vendo os mesmos homens pisarem o solo político, os mesmos ameaços de fisco, a mesma gradativa decadência. A política, sem actos, sem factos, sem resultados, é estéril e adormecedora.»

A 27 de Setembro de 1893, num dos «Ecos de Paris», Eça mensura algumas das subtis incoerências da Revolução Francesa, dizendo que o Parlamento francês se tornou: «longa planície, produtiva, e chata, sem uma eminência, uma linha que se eleve para as alturas, moinho torneando ao vento ou torre airosa donde voem aves».

Em 1896, Eça de Queiroz, numa das «Cartas Familiares de Paris», publicou «A Propósito de Thermidor» onde explana uma série de reflexões sobre o impacto da Revolução Francesa, apontando as incongruências do sistema: «A Terceira República não faltou a este dever prudente: – e apenas instalada nos palácios onde habitara o Segundo Império, imediatamente desaparelhou e recolheu a Revolução. A grande época que até aí andava sempre, em pleno sol, no rumor da vida ambiente, misturada ao redemoinhar das ideias e dos interesses, penetrou no silêncio e na sombra dos arquivos e aí ficou, como cousa finda, aposentada, já catalogada.»

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(…) Continua em “Eça de Queiroz Esmiúça o Republicanismo – Parte II”

Bibliografia:
. Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, «As Farpas», 1872
. Eça de Queiroz, «Novos Factores da Política Portuguesa», Revista de Portugal, Volume II, Abril de 1890, págs. 526 – 541
. Eça de Queiroz, «Distrito de Évora», 1867
. Eça de Queiroz, «Ecos de Paris», 27 de Setembro de 1893
. Eça de Queiroz, «Cartas Familiares de Paris – A Propósito de Thermidor», em 1896

* Membro da Plataforma de Cidadania Monárquica


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