Recolha de textos: Miguel Villas-Boas *
Continuamos hoje a deslindar a visão de Eça de Queiroz in «Novos Factores da Política Portuguesa», nas «Farpas» e em cartas pessoais, sobre o Partido Republicano português e a previsão catastrófica que o seu génio fazia de uma revolução republicana. Pela análise de Eça somos levados a constatar que o incipiente partido republicano que poucos anos mais tarde fez a revolução que levou à implantação do novo regime a que chamaram república, não se tratava de mais do que um “caldo” de homens que não representavam de todo a sociedade portuguesa, nem na qual os portugueses se sentiam representados ou mesmo se revissem.
É pela decomposição que faz in «Novos Factores da Política Portuguesa» que se principia a recolha efectuada, na obra sublime, de Eça de Queiroz sobre o republicanismo português:
«Depois do ultimatum de 11 de Janeiro e do frémito de indignação que percorreu todo o País até às mais obscuras vilas, houve um momento em que justificadamente se pôde supor que a Nação, enfim despertada do seu sono ou da sua indiferença, pronta a retomar a posse de si mesma, e certa de que a vida que vinha levando nestes últimos vinte anos a votava irrevogavelmente às humilhações e aos desastres, decidira, num ingente esforço de vontade, começar uma vida nova.
Não escaparam a esta ilusão cabeças que se prezam de friamente raciocinadoras. E quem estas linhas escreve, apesar de dois lustres inteiros de desilusões, chegou a crer que realmente existia no fundo da Nação, sob a sua aparente apatia, uma grande reserva de força, capaz de inspirar e de impor, sem resistências possíveis, uma reorganização política e económica do Estado.
A ilusão, como dissemos, em breve se sumiu por esses ares. Poucas semanas bastaram a evidenciar que não há no país uma força latente de onde pudesse vir o movimento de reorganização nacional, ou que, se a há (é sempre grato guardar uma esperança), o ultimatum do dia 11 e a perda de territórios maninhos de África, que quase ninguém sabia onde ficavam, não foi abalo bastante decisivo para a fazer despertar e operar.» (…)
[…]
«Constitui esta massa já considerável de descontentes um partido militante e organizado? Não, certamente. Esta massa não está ainda filiada no Partido Republicano, não pertence ainda a clubes, não obedece ainda a um programa. Quando muito lê o Século. Mas constitui essa classe, por assim dizer, não-monárquica, que no Brasil permitiu que se fizesse a Revolução no espaço de duas horas, e que é tão perigosa para a segurança das instituições pela sua total indiferença e desamor, como o seria pela sua intervenção hostil e combatente.
Tais são os elementos de que já efectivamente se compõe ou com que condicionalmente já conta o Partido Republicano. É todavia este partido um perigo imediato e iminente para as instituições? Longe de toda a ilusão optimista, afigura-se-nos que esse partido, no dia de hoje, oferece um perigo ainda mínimo, porque tem a impotência de uma multidão a que falta a direcção. Entre os republicanos organizados, filiados, arregimentados, quantos se contarão que sintam confiança real no seu directório e seus chefes oficiais? Raros, segundo nos afirmam aqueles que por experiência própria o sabem. Pode haver, e há, por esses chefes simpatia individual; pode haver, e há, crença na sua sinceridade. Mas não há já a fé na sua coragem, na sua habilidade, ou na sua competência como organizadores de um movimento. E enquanto à massa dos descontentes, dos que chamamos não-monárquicos, esses nunca consentiriam certamente em admitir como chefes, e portanto como futuros promotores da reorganização nacional, os indivíduos, aliás pessoalmente estimáveis, que hoje têm a direcção aparente, e queremos supor que real, dos interesses republicanos. E sem desejar ser descorteses para com personalidades, – somos forçados a constatar que os actuais chefes republicanos, como tais, como chefes, fazem sorrir toda a parte séria da Nação. (…)
(…) Mas ainda mesmo sem direcção, ou com uma direcção impotente porque incompetente, o Partido Republicano existe, exibe-se, fala, escreve, vota; e por este mero facto de existir obriga as classes governamentais a uma atitude legítima de defesa e de resistência. E eis aqui, se não erramos, uma outra fatalidade que vem aumentar os perigos do republicanismo. Desde que, desgraçadamente, se não pôde impedir por uma sábia administração que se viesse a formar esta massa de descontentes, prestes a tornar-se revolucionária, as classes governamentais são necessariamente obrigadas, desde que ela se formou, a mantê-la em respeito e a procurar inutilizá-la por meio da repressão. Os próprios republicanos por mais fanáticos não esperam decerto que o governo lhes entregue espontaneamente as secretarias, o tesouro e a direcção dos serviços públicos. Desde que do seu lado comece a acção – do lado do Poder deve começar a repressão. Ora esta repressão só se pode efectuar coarctando certas liberdades, – liberdade de imprensa, liberdade de reunião, liberdade de associação – que entre nós penetraram profundamente nos costumes públicos, e que formavam além disso o único recurso deixado ao descontentamento para desafogar e se consolar. A perda do direito de usar (e sobretudo de abusar) dessas liberdades vai portanto originar uma imensa irritação, e um acréscimo de descontentamento tanto mais intenso quanto mais comprimido. As repressões são sempre as grandes fautoras das revoluções. Um partido perseguido cresce na proporção geométrica dessa perseguição. Na Alemanha, há sete anos, os socialistas reuniam menos de uma dezena de milhares de votos; vieram as famosas leis de repressão, e a política terrorista de Bismarck; e ao fim de seis anos os socialistas obtinham mais de um milhão de votos, e o próprio Bismarck caía. As classes governamentais sabem isto perfeitamente bem, e não procedem por obcecação ou por um leviano desdém das repetidíssimas lições da História. Fazem o que não podem deixar de fazer – o que é o seu dever que façam; sobretudo quando o partido de revolução reclama não um conjunto de justas reformas, que elas poderiam oportunamente conceder, mas a derrocação pura e simples de todo o regímen constituído, sem um programa melhor de ideias para substituir as dele, só com o fim de destruição e de deslocação de pessoas. A repressão porém só se pode fazer com certeza de êxito pacífico quando exista por trás, a sustentá-la, uma quase unânime corrente de opinião, uma larga maioria nacional, fielmente vinculada e aferrada às instituições monárquicas, só delas esperando a salvação, e não compreendendo que a Nação possa sem elas ser nação. Foi esta funda corrente de opinião, esta forte maioria nacional que faltou no Brasil ao ministério Ouro Preto.
Existe essa maioria nacional entre nós, uma maioria amando tanto as Instituições que esteja pronta, e com alacridade, a dar por elas o dinheiro dos seus cofres e o sangue das suas veias? Infelizmente, por mais que lhe contemos e recontemos os elementos, não nos parece que exista. Na classe média uma minoria é republicana; uma parte importante é indiferente senão hostil; e uma outra parte tende para a hostilidade pelo mero facto de estar excluída do Poder e dos seus benefícios. No povo, o das cidades é republicano; e o do campo, alheio a princípios políticos, nunca se move e nunca se moverá talvez senão para defender o seu pão, se novos e fortes impostos lho ameaçassem.
Resta portanto uma metade da classe média fiel às instituições, porque fiel ao partido político que nesse momento as defenda. Mas foi essa mesma metade da classe média que no Brasil, acabando de dar uma larga maioria parlamentar ao ministério Ouro Preto, e estando justamente a promover uma subscrição para levantar uma estátua ao visconde de Ouro Preto (!) – ficou muito quieta nas suas casas, nos seus empregos ou nos seus escritórios, quando alguns jornalistas e alguns tenentes que iam reclamar uma mudança de ministério se lembraram de proclamar uma mudança de regímen! Esta curiosa lição da História actual, se outras não tivéssemos, bastaria a mostrar que confiança se pode ter, neste último quartel do século XIX, na fidelidade política da classe média.
Ora se esta maioria nacional falta às instituições, elas têm de se apoiar necessariamente numa outra força que, entre nós, só pode ser o exército. (…)
(…) Assim viemos expondo, tais como os compreendemos, os elementos da crise política que se desenha, e que, nascendo da nossa crise crónica, a crise económica, se vai ajuntar a ela ajudando a agravá-la por diversos modos.
A situação é esta. Uma parte importante da Nação perdeu totalmente a fé (com razão ou sem razão) no parlamentarismo, e nas classes governamentais ou burocráticas que o encarnam; e tende, por um impulso que irresistivelmente a trabalha, a substituí-Ias por outra coisa, que ela ainda não definiu bem a si própria. Qual pode ser essa outra coisa? Que soluções se apresentam?
Por um lado a República não pode deixar de inquietar o espírito de todos os patriotas. Ela seria a confusão, a anarquia, a bancarrota. Além disso (é de urgente patriotismo falar com franqueza) a República entre nós não é uma questão de política interna, mas de política externa. Um movimento insurreccional em Lisboa, triunfante ou semi-triunfante, seria no dia seguinte um exército de intervenção marchando sobre nós da fronteira monárquica da Espanha. E se a Espanha, pela morte da criancinha inocente que é rei, se convertesse numa república conservadora – um movimento paralelo em Portugal, apoiado por ela e coroado de êxito, seria o fim da nossa autonomia, da nossa civilização própria, da nossa nacionalidade, da nossa história, da nossa língua, de tudo aquilo que nos é tão caro como a própria vida, e por que temos, durante séculos, derramado sangue e tesouros.
Por outro lado uma «revolução feita de cima», uma concentração de força na Coroa (que a muitos espíritos superiores, e que vêem claro, se apresenta como a nossa salvação), concentração, que, apoiada na parte mais inteligente e mais pura das classes conservadoras, procedesse às grandes reformas que a consciência pública reclama, não seria compreendida pela Nação irremediavelmente impregnada de liberalismo e que nessa concentração de força só veria uma restauração do absolutismo e do poder pessoal.
Que resta no meio destas duas soluções? Restaria ainda a solução quase milagrosa de que as classes conservadoras e parlamentares, cônscias enfim dos perigos que as envolvem, procedessem heroicamente à sua própria depuração e moralização; e, tendo readquirido por esse nobre regeneramento o apoio da maioria sã do País, se lançassem à obra patriótica e exclusiva de reorganizar a Nação administrativa e economicamente. Mas este milagre não é provável. Não há exemplo na História dos séculos de que uma classe conservadora, por uma lenta evolução da consciência, a si mesma se regenere, se depure e se moralize.
Que resta pois? Resta, como esperança, o sabermos que as nações têm a vida dura, e que o nosso Portugal tem a vida duríssima. E se os que estão no poder porfiarem sempre em cometer a menor soma humanamente possível de erros e realizar a maior soma humanamente possível de acertos, muitos perigos podem ser conjurados e a hora má adiada. (…)
(…) Toda a dúvida está em saber se ainda há, ou se já não há, em Portugal, um governo capaz de sinceramente se compenetrar desta grande, desta irrecusável verdade.
Um espectador.»
Eça de Queiroz, assinou assim como “um espectador” que quanto a nós só poderia ser catalogado de “muito atento”!
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Eça de Queiroz, também, analisou a Revolução Francesa e observou de muito perto a evolução dos sucessivos actos do grande drama francês, e, a 13 de Agosto de 1893, publica em «Ecos de Paris» uma crónica sobre os festejos do 14 de Julho, que começa da seguinte forma:
«Paris está amuado com a República. E, para mostrar bem visivelmente o seu despeito, não embandeirou, não iluminou, não dançou, e não berrou, na festa nacional de 14 de Julho. Nunca tivemos, com efeito, um 14 de Julho mais silencioso, mais apagado, mais vazio, mais descontente [...]. E se é certo que, em parte, justifica esta indiferença popular pelo facto de a mensagem ideológica da Revolução nada dizer ao povo que é essencialmente individualista, também não deixa de apontar como motivo fundamental a falta de carisma dos homens da República, pois que, «para que a República pudesse ter uma grande festa, devia organizá-la em favor de um grande republicano.
Mas aí é que está a dificuldade. Qual grande republicano? Nenhum reúne a admiração unânime».
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Numa carta privada, dirigida a Oliveira Martins e datada de Paris, 5 de Fevereiro de 1891, Eça refere-se em termos incisivos à Revolução de 31 de Janeiro desse ano, no Porto:
«Telegrafei-te, perguntando se querias, ou podias, fazer o artigo que a Revista não pode deixar de publicar sobre esse furúnculo revolucionário que rebentou no Porto, como sintoma de doença geral; a opinião geral é que esse é o começo da débâcle. O Governo ainda poderia afastar a hora má por algum tempo, se aproveitasse a ocasião para desorganizar inteiramente, à maneira sumária do excelente Constans, o partido republicano. É natural que o caso do Porto seja um lever de rideau, e que o partido republicano, que, em Lisboa e nas cidades da província, permanece intacto e imperturbado, sem ter perdido nem um homem, nem um ceitil, nem uma ilusão, prepare para breve o drama a sério.»
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Eça de Queiroz, in as «As Farpas», 1872, adivinha o presente futuro:
«Nós estamos num estado comparável apenas à Grécia: a mesma pobreza, a mesma indignidade política, a mesma trapalhada económica, a mesmo baixeza de carácter, a mesma decadência de espírito. Nos livros estrangeiros, nas revistas quando se fala num país caótico e que pela sua decadência progressiva, poderá vir a ser riscado do mapa da Europa, citam-se em paralelo, a Grécia e Portugal»; e acrescentou que “O país não tem dinheiro; os espíritos não têm instrução; as estradas derretem; a frequência das escolas diminui; o movimento da roda dos expostos aumenta; a agricultura paralisa-se; as nossas possessões revoltam-se; … Em Lisboa fazem-se leilões…»
Nas «Prosas Bárbaras» de 1903, publicado postumamente, onde os seus primeiros trabalhos, publicados avulso na revista “Gazeta de Portugal”, foram coligidos em livro, Eça antevê a plutocracia:
«Logo que na ordem económica não haja um balanço exacto de forças, de produção, de salários, de trabalhos, de benefícios, de impostos, haverá uma aristocracia financeira, que cresce, reluz, engorda, incha, e ao mesmo tempo uma democracia de produtores que emagrece, definha e dissipa-se nos proletariados.»
E pensar que já na sua juventude, Eça de Queiroz, quando trabalhava no Jornal «Distrito de Évora» escrevera sobre o futuro com uma actualidade assustadora:
«Hoje que tanto se fala em crise, quem não vê que, por toda a Europa, uma crise financeira está minando as nacionalidades? É disso que há-de vir a dissolução. Quando os meios faltarem e um dia se perderem as fortunas nacionais, o regime estabelecido cairá para deixar o campo livre ao novo mundo.»
EÇA É QUE É EÇA!
Bibliografia:
. Eça de Queirós, «Novos Factores da Política Portuguesa», Revista de Portugal, Volume II, Abril de 1890, págs. 526 – 541
. Eça de Queiroz, Crónica in «Ecos de Paris», 13 de Agosto de 1893
. Eça de Queiroz, Carta a Oliveira Martins, 5 Fev. 1891
. Eça de Queiroz, «As Farpas», 1872
. Eça de Queiroz, «Distrito de Évora», 1867
. Eça de Queiroz, «Prosas Bárbaras», 1903
* Membro da Plataforma de Cidadania Monárquica
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