Em primeiro lugar, quero agradecer a oportunidade de vir a esta simpática cidade, a convite da Real Associação do Porto, a uma terra de gente tão boa, e que tão bem me acolheu, falar do que todos aqui, admito eu, há muito sabem.
Na minha actividade académica estou habituado a ensinar. Aqui, convosco, sinto que só posso aprender.
Por isso, tentarei ser breve, para ter a oportunidade de ouvir e de debater com quem saiba mais do que eu...
Propus-me trazer-vos uma charla que, hão-de fazer-me essa justiça, tem ao menos um título impressivo: a ética da exigência. Se nada do que disser a partir daqui se aproveitar, ao menos não se há-de perder tudo. O título se calhar não é mau.
A Ética ocupa-se de valores e de princípios que se manifestam no comportamento humano. Que se traduzem ou que enformam a nossa maneira de viver e de nos relacionarmos uns com os outros. A Ética, neste sentido, é relacional. Sugere o outro,a minha relação com ele, implica comunidade. Espaço comum, Res publica. Por isso, “ética republicana”, expressão tão soprada pelas bocas mais insuspeitas, e até por terroristas, ou é pleonasmo ou paradoxo.
Será pleonasmo se tiver por referência a qualificação da intervenção cívica, a prossecução do bem comum. Será apenas paradoxo se a quiserem relacionar com este regime que há 102 anos nos castiga.
Que Ética pode andar de mão dada com a República, essa senhora de mau porte e pouca roupa, sobretudo da cintura para cima e que nenhum bom pai de família gostaria de ter por nora? Na república, no nosso sistema republicano, não vejo princípios e valores. Não há princípios, porque está na cara que isto vai ter um fim triste, não há valores porque senão já os tinham posto no prego. Um paradoxo, portanto.
Um paradoxo tão mais evidente quanto é certo que pretendem associar a essa ética republicana (peço desculpa por estar a dizer palavras feias à mesa!) uma forma despojada e altruísta de exercício da política, quando o que mais há é exemplos do contrário. A bala como argumento político e o homicídio como derradeira vitória das ideias. Já se percebeu que a Ética nada tem que ver com regimes. E se tivesse, não era com este regime republicano.
Mas a ética casa bem com a exigência. Com a vontade de não nos bastarmos com a mediocridade. Por isso, os cultores da ética hão-de apreciar dois conceitos modelares da nossa vida colectiva: democracia e liberdade. E estes dois conceitos, como tenho tido a oportunidade de dizer noutras ocasiões, referem-se mais ao sistema de Governo do que a forma de organização do Estado. É evidente que a democracia e a liberdade não são sinónimos de república. Isto é uma evidência. E essa pode bem ser a nossa primeira exigência: a da verdade! Distinguir a verdade da mentira. Se democracia e liberdade fossem sinónimos de república, teríamos paraísos democráticos no Irão e em Cuba. E vandálicas tiranias na Noruega e no Japão. No Luxemburgo e na Dinamarca. Na Austrália e no Canadá. Apesar de tudo, quer-me parecer que nenhuma lição de democracia ou de liberdade pode a Suécia receber da Birmânia.
Mesmo a nossa república tem muito pouco que ver com democracia e com liberdade. Até porque, na verdade, se vivia uma democracia muito mais representativa e se experimentava uma liberdade muito mais arejada em 1909 do que em 1911. Em nome da dita democracia e da apregoada liberdade, o que se fez foi, pura e simplesmente acabar com elas. Com a democracia e sobretudo com a liberdade.
Mesmo ao nível da liberdade de expressão e de representatividade nas assembleias legislativas. Em 1909 o PRP existia, legalizado, concorria a eleições e tinha deputados que nas câmaras diziam do Chefe do Estado – o Rei – o que Maomé não ousava dizer do toucinho. Pois bem, logo alcançadas as mais amplas liberdades que o cinco do dez tornou possíveis, encheram-se preventivamente as prisões de criminosos de pensamento, reduziu-se drasticamente o universo eleitoral (nem pensar no voto feminino tão apegado ao beatério) e impediu-se a representação política monárquica. Foi assim. Isto são factos, factos que teimam em andar esquecidos.
Mas, hoje, isso é história. E se disto aqui falo, agora, é só para recordar que, como diz o Povo, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Mas é história e não é dela que nos alimentamos. Como alguém disse, um povo sem memória é um povo sem futuro. E esta aventura colectiva que é Portugal não começou em 1910, ao contrário do que muitos nos querem fazer acreditar.
Portugal começou a 5 de Outubro, sim, mas do longínquo ano de 1143. É com o Tratado de Zamora que todo um Povo, inspirado pela acção mobilizadora do Rei, impõe a existência de um novo Estado soberano, de uma Nação livre e independente.
Mas isto, como já disse, isto é História. E mesmo tendo memória, uma memória crítica, exigente, devemos estar apostados, sobretudo, em construir Futuro.
E é em nome dessa exigência que se pode perguntar: que sentido faz manter o actual sistema político? É certo que todos sabemos que hoje as preocupações das pessoas são outras. Hoje, as pessoas temem o que o futuro reserva às suas vidas. À sua e à dos seus filhos.
Mas os que não conseguem prescindir do sentido da importância, mesmo quando sovados pelo despotismo da urgência, bem podem insistir nesta pergunta: que sentido faz manter o actual sistema político? Esqueçamos por instantes o défice e a dívida pública. Falemos antes de dignidade, de sentido patriótico, e de exemplo. Procuremos perceber, no fundo, qual o papel de Portugal no Mundo e junto dos que nele, nos sítios mais inimagináveis, falam e sonham em Português.
O que temos, meus amigos, o regime que temos, não é bom. E se não é bom, talvez não fosse asneira mudá-lo.
Porque na verdade, nunca como agora foram tão apreensíveis, tão demonstráveis, as vantagens de uma organização do Estado que privilegie o princípio da continuidade e que potencie a agregação de esforços e a mobilização de todos em torno de um desígnio comum. Que se galvanize num verdadeiro projecto nacional. E isso é muito mais facilmente alcançável pelo poder magnético, inspirador, mobilizador, da Coroa, pela sua ressonância axiológica, do que pelo artificialismo anódino da construção jurídica de uma chefia de Estado electiva, ancorada num jogo de legitimidades enganador.
Não gosto de fulanizar... os regimes estão sempre acima das pessoas que em cada momento os servem, mas, em nome desta ética de exigência, convido-vos a um exercício especulativo. Será que o nosso Presidente, qualquer dos que a nossa história nos foi dando, de Cavaco a Arriaga, será que o nosso presidente teria a capacidade de encher as ruas de Portugal como vimos acontecer há pouco tempo, em Inglaterra, por ocasião do Jubileu da Rainha Isabel? Aquelas manifestações foram para ela? Foi por causa dela? Tudo o que vimos, todos aqueles tributos sentidos de uma homenagem sincera, de artistas, de políticos, de cientistas, de gente anónima, tudo aquilo, e foi muito, foi para ela? ou terá sido antes para o que aquela senhora representa? Toda aquela genuína satisfação foi por causa dela? ou por causa daquilo que antes dela, os seus pais e avós, já representavam? E a maneira como foi festejado o Jubileu em toda a Commonwealth? O que estava ali em causa era aquela senhora octogenária? Não, não era, manifestamente, não era.
O problema, este desfasamento, esta assimetria, infelizmente não está nas pessoas. É um problema genético, do próprio regime, que prefere a pureza asséptica de uma ilusão formal à experiência de uma vida de serviço.
Como dizia Mouzinho de Albuquerque ao seu Príncipe, D. Luís Filipe, o mesmo que os paladinos da liberdade, e em nome dela, abateram em 1908 com apenas 20 anos de idade, “para um Príncipe, nascer é assentar praça, que só pode ter baixa para a sepultura!” Do berço à sepultura, uma vida de entrega, de aprendizagem, de serviço.
E em república? Como se assegura a equidistância? Como se pode imaginar possível ao Chefe do Estado exercer uma magistratura de imparcialidade se dez minutos antes de se afirmar imparcial era descaradamente uma das partes?
Se virem bem, desde 1976, todos os chefes de Estado, antes de serem eleitos, foram chefes de partido (Cavaco, Sampaio, Soares). Todos... bem, todos não. Houve uma excepção, a do Gen. Eanes, que só foi chefe de partido depois de abandonar Belém. Mas até o Gen. Eanes foi chefe de partido. A chefia do Estado é, portanto, encarada como “prémio carreira” da actividade partidária.
Quem pode acreditar que alguém inebriado pelos vapores que da baixa política, da politiquice partidária sempre emanam, é capaz da isenção?
E isto é particularmente sensível na profunda transformação que estamos a viver. Seria muito necessário que na chefia do Estado estivesse a voz, reconhecida, da autoridade. De uma autoridade que se funda na credibilidade, pessoal e familiar, e numa legitimidade histórica. Porque, sejamos exigentes, é de credibilidade que estamos a precisar. Hoje e sempre.
Que credibilidade pode ter um árbitro que foi capitão de uma das equipas?
Não pode ter credibilidade quem vive apenas da conjuntura!, quem se move pelos ciclos eleitorais e pela conveniência da sua própria eleição, confiando na redenção que a nossa curta memória e nenhuma exigência lhe vai conferindo. Estes, os que são assim e assim não podem deixar de ser, não têm, nem podem ter, credibilidade. Como é evidente que não tem autoridade o regime que faz da incredibilidade, a pedra angular da sua suposta ética.
E permitam-me que leve este arrazoado um pouco mais longe.
Como procurei ter demonstrado, é clara a bondade do princípio monárquico. E para nós, monárquicos, este é o ponto de partida, é esta a essência do que nos une. Mas há aspectos laterais importantíssimos.
Como este de nos reconhecermos políticos.
Ser-se monárquico, defender a instituição real como forma de organização do Estado, é apresentar um projecto de ruptura. Um projecto que exige mudança.
E temos de conseguir projectar este projecto, passe a cacofonia.
Sejamos claros: é raro ouvir falar lucidamente da solução monárquica. E provavelmente, como na parábola do semeador, as sementes por nós lançadas poderiam cair em terra fértil e dar muito fruto.
Mas não têm dado... Não por falta de boa terra, muito menos por escassez de boa semente. É por inépcia ou preguiça do semeador!
E isto é tão mais grave quanto é certo que o monarquismo, como proposta política, não pode ser protagonizado pelo Príncipe. Não pode nem deve, já que o Príncipe tem de reservar para si o capital de representação de todo um Povo. É apenas isto que se pede do Príncipe. E não é pouco... se calhar é mesmo tudo. O Príncipe não pode pretender ser a cabeça do movimento monárquico, nem muito menos, por inacção dos monárquicos, ser obrigado a sê-lo, já que tem de servir de outra forma o País.
E o nosso Príncipe... que sorte temos!, como ele nos ensina o que é servir, sempre, o nosso País!
É que mesmo nas Monarquias reinantes há já quem ponha em causa o princípio monárquico... mas esses não conseguirão beliscá-lo enquanto a Instituição Real conseguir ser a verdadeira representação de todos e enquanto souber interpretar a Missão a que é chamada, enquanto for fiel à sua genética vocação. Quando a Instituição Real abdicar desse saber, quando a Instituição Real pretender ser mais do mesmo, quando quiser ser igual ao resto, acabando por ser pior do que qualquer alternativa, quando a Coroa quiser ser uma qualquer espécie de funcionalismo público, a Monarquia perde a sua vantagem específica e deixa de valer a pena. Deixa mesmo, em meu entender, de fazer sentido.
Não perceber isto, é também renunciar a esta proposta ética de exigência!
Viva Portugal! Viva o Rei! Real Associação do Porto
“A Ética da Exigência”
**Nuno Pombo
28.06.2013
** Presidente da Real Associação de Lisboa