terça-feira, 1 de julho de 2014

Rei Dom Miguel


Comunicação do Prof. Doutor Manuel Braga da Cruz por ocasião da sessão solene comemorativa do 180º aniversário da passagem e pernoita de D. Miguel em Alvalade a caminho do exílio.

Permitam-me que felicite a Casa do Povo de Alvalade pela louvável iniciativa de assinalar a efeméride que hoje aqui nos congrega: a passagem da última noite em Portugal de El-Rei D. Miguel, nesta terra de Alvalade, na véspera da partida para o exílio donde não mais voltaria.
É uma iniciativa a vários títulos louvável. Antes de mais  porque evoca um acontecimento marcante da nossa história: o fim da guerra civil e a partida para o exílio de um Rei vencido. Não é vulgar evocar os vencidos e os derrotados, mais ainda em guerras fratricidas. Este é por isso, um gesto nobre e generoso, de quem sabe olhar, mesmo de longe no tempo, para um período dramático da nossa história, sem preconceitos, mas com espírito patriótico. Porque não foi apenas El-Rei D. Miguel que foi exilado nesse dia 1 de Junho de 1834, mas o povo que com ele se identificava, a tradição portuguesa que ele incarnava e defendia. Quem partiu para o exílio nesse dia, foi uma parte inteira de Portugal que, se foi afastada, nunca deixou Portugal. A pátria ficou no coração dos que partiram, bem firme e enraizada. E os que partiram ficaram para sempre no coração de muitos portugueses, que os recordavam e visitavam, que os ajudavam como se de família própria se tratasse, que suspiravam pelo seu regresso, como se deseja que voltem aqueles que se amam.

O miguelismo não partiu, ficou, como dimensão natural da cultura popular e da tradição portuguesa. Um pouco à semelhança do sebastianismo, desenvolvido depois da tragédia de Alcacer-Quibir, o miguelismo nunca abandonou o imaginário português, para ser amado e cultivado, ou detestado e combatido1. Não me refiro apenas ao movimento político, ao partido legitimista, que perdurou como memória de uma bandeira de guerra, ao longo de todo o século XIX, para ressurgir em Portugal nas românticas incursões da Galiza, e para se reconciliar com os adversários seculares nas costas de Dover, numa comunhão de exílios e de desejos de regresso à pátria. Refiro-me também a um espírito, a uma memória de passado projectada em futuro, a um entendimento secular do povo que somos, a uma identidade histórica de raízes antigas. O miguelismo tornou-se apanágio de “uma maneira antiga de ser português”, transformou-se em saudade, bem portuguesa, de alguém amado que um dia havia de regressar. Tudo isso ficou e perdurou, entranhado na alma da pátria dilacerada pela divisão.
Évora-Monte, Alvalade e Sines são as últimas estações de uma via- sacra não apenas de um Rei, mas de um povo antigo e de uma tradição ancestral, que nunca se aceitaram banidos da história, mas antes sonharam com o regresso a um caminho português de futuro.
A Casa do Povo de Alvalade, ao trazer à nossa memória este último percurso de exilados, tem o mérito de nos recordar que a alma do povo não é apagável, que não há modo de banir do futuro da pátria aquilo que fomos, e que sem raízes nunca cresceremos direitos nem permaneceremos de pé, tal como as árvores.

Outro mérito, porém, tem a Casa do Povo ao reunir-nos hoje aqui, para nos fazer reflectir na história que revivemos, para nos proporcionar uma meditação retrospectiva acerca de comos devemos enfrentar as necessidades de mudança. O que estamos a recordar neste momento, passou à história como instauração do liberalismo em Portugal, que não diferiu da forma como se estabeleceu noutros países do sul da Europa, mas que ocorreu de modo bem diverso da implantação da liberdade em países onde ela se tornou tradição, como em Inglaterra, e por isso mesmo profundamente arreigada e natural.
As guerras civis são sempre guerras internacionais que ocorrem em determinados países. A nossa não escapa a esta categorização. O liberalismo que dela saiu vencedor foi, como sabemos um liberalismo importado, um liberalismo conquistado pelas armas e, por isso mesmo, um liberalismo imposto, outorgado, que não se tornou hegemónico, nem brotou espontaneamente da alma do povo e da consciência da pátria, não se tornando por isso popular. O liberalismo foi, como noutros países latinos, um elitismo.

Disse-o lapidarmente Maria Teresa Mónica, historiadora do miguelismo: “A internacionalização do conflito entre os defensores do liberalismo e do “absolutismo” ditou a derrota destes últimos, sobretudo em Portugal. Aqui, o liberalismo seria implantado através de imposição externa [da Quádrupla Aliança], fácil num pequeno país, periférico, dependente e fraco, já que as forças internas liberais não eram suficientes para lhe dar a vitória. Por isso ficou a pairar a dúvida quanto a quem teria sido o vencedor da guerra civil, se não tivesse havido intervenção estrangeira; permaneceu o trauma de uma invasão espanhola comandada pelo general Rodil; e subsistiu a indefinição, dado o carácter híbrido do tratado de paz entre os dois contendores, liberais e miguelistas, ficando estes últimos sem qualquer protecção”2.

Consequência desse modo de implantação do liberalismo, mais de fora que de dentro, mais a partir de cima que de baixo, mais através do Estado do que por meio da sociedade, foi sem dúvida a debilidade da nossa sociedade civil e do nosso civismo, de que ainda hoje sofremos as implicações. O tempo do liberalismo passa por ter sido em Portugal o da reconstrução do Estado, não apenas do seu aparelho administrativo e das suas forças armadas, mas da sua prevalência e hegemonia sobre a sociedade.

Esta debilidade da liberdade condicionou a nossa iniciativa económica, a nossa capacidade de inovação, a nossa consciência cívica e nacional, e acabou por moldar a nossa cultura política e social, pouco participativa e responsável pelos destinos colectivos.

O modo de implantação do liberalismo é uma lição para as mudanças do futuro, para as necessárias adaptações aos tempos e às épocas, para vencer os inesperados desafios que sempre se hão-de colocar. É a demonstração de como os custos das revoluções, conduzidas por vanguardas, por vezes estrangeiradas, sem serem acompanhadas pela adesão daqueles a quem se destinam, acabam por ser muito superiores aos benefícios pretendidos, e que nenhuma mudança é tão sólida e duradoura como as que se operam evolutivamente, incorporando a tradição na novidade, renovando o passado no futuro. É a demonstração de que não há incompatibilidade entre a tradição e a inovação, entre a antiguidade e a modernidade, e que as grandes transformações são aquelas que se fazem por incorporação e não por exclusão, e que, desse ponto de vista, não deve haver mais lugar a guerras nem a exílios, mas sim à capacidade de adaptação, ao entendimento negociador e à paz, como processo dinâmico e nunca acabado.
A memória d’El-Rei D. Miguel ficou na história de Portugal de forma desigual: amado por uns, vilipendiado por outros. A distância temporal, permite que hoje, longe dos fragores da guerra e da violência dos conflitos, possamos olhar para esta figura profundamente  portuguesa com maior rigor, e compreender o que representou na sua época desapaixonadamente.

Não é possível entender a figura de D. Miguel sem atender ao contexto internacional saído do Congresso de Viena, e ao contraste que atravessava as nações europeias entre o Antigo Regime e a Revolução.

El-Rei D. Miguel representou por certo a legitimidade e a tradição portuguesa, e a resistência a uma modernização importada, que afrontava os valores radicadas no mais fundo da alma do povo, com que se identificou. Não era tanto a ideia de liberdade que motivava o antagonismo dos miguelistas às hostes de D. Pedro, mas antes a ideia revolucionária da ruptura com as instituições do antigo regime, e em particular da Igreja. Isso mesmo explica a atitude da Santa Sé para com o governo de D. Miguel, bem como o comportamento da grande maioria dos bispos portugueses da época. “Eis o Rei mais católico que tenho em toda a cristandade” – assim o apresentou Gregório XVI em Roma, em Agosto de 18343. Mais do que o “absolutismo”, com que António Sardinha se recusava a identificar o miguelismo 4, o que os seguidores de D. Miguel
defendiam eram as instituições tradicionais portuguesas, entre as quais as cortes e os municípios.

Dizia Alexis de Tocqueville que “a revolução acabou por realizar, repentinamente, por um esforço convulsivo e doloroso, sem transição, sem precaução, sem respeitos, o que se teria acabado por realizar pouco a pouco por si ao longo do tempo. Tal foi a sua obra” 5.
O tempo ter-se-ia encarregado de ir substituindo as antigas instituições pelas modernas, sem necessidade das convulsões que acabaram por se dar, se tivesse havido a capacidade de entendimento e de reforma progressiva que faltou.

El-Rei D. Miguel foi um rei amado pelo seu povo, que o assumiu e venerou. Luz Soriano, historiador maior da nossa Guerra Civil, não hesita em afirmar que a maioria da população era miguelista 6. Oliveira Martins assim o descreve: “D. Miguel e o seu franco plebeísmo eram a genuína expressão do Portugal Velho que, de crises em crises sucessivas, atingia agora a última. O Rei passava, a cavalo, a galope, com a vara entalada na sela, moço e radiante; e agente das ruas parava a adorá-lo, com um ar de júbilo ingénuo nos rostos; os mendigos de uma cidade mendicante avançavam ajoelhando e o príncipe abria a bolsa, dava-lhes dinheiro; as mulheres rezavam, pedindo a Deus a conservação de um rei tão belo, tão bom, tão amigo do povo. Corriam pequenos catecismos, orações em que Portugal, repetindo Jerusalém, era o motivo de salmos e antífonas ardentes, invocando-se a Virgem-Puríssima-Nossa-Senhora para que protegesse o augusto e amado rei, defendendo-o de todos os seus inimigos, livrando o reino do pestilento e infernal contágio da seita maçónica…etc. Sempre que aparecia em público, D. Miguel era vitoriado, levado em triunfo, entre bênçãos e aclamações delirantes: de um a vez, passando na Carreira dos Cavalos, caminho de Queluz, achou-se rodeado, sem poder avançar. Eram oficiais do Exército, eram voluntários realistas, eram paisanos, homens, mulheres, gente de todas as idades e classes, que puxando a carruagem o levou em triunfo, entre vivas espontâneos e ardentes, até Val-de-Pereiro. Ninguém dirigia, ninguém ordenava essas festas sem programa, que brotavam como viva expressão do entusiasmo popular. Respirava-se o ardor de uma cruzada: D. Miguel era um Pedro- Eremita. Criava-se uma cavalaria nova e sagrada, para opor à seita maçónica: era a Ordem de S. Miguel da Ala de que o Rei tinha o grão- mestrado, para defender a Santa Religião católica, apostólica, romana, e restaurar a legitimidade portuguesa” 7.
D. Miguel foi, para além disso, um rei carismático, visto como ungido, investido numa missão histórica e providencial, que se tornou num mito nacional. É ainda Oliveira Martins que nos conta a sua retirada do Porto. “A cada instante parava: eram os velhos, as mulheres com as criancinhas pela mão, que vinham saudá-lo com tristes vivas, rodeando-o, pedindo-lhe a bênção. (…) D. Miguel atravessava as aldeias que o vinham esperar de joelhos, deitando-lhe flores e votos, bênçãos e aclamações” 8.

Se é verdade que é pelos frutos que as árvores se reconhecem, também é pela descendência que melhor podemos medir a grandeza dos Reis. Se o exílio de D. Miguel significou uma fractura dolorosa da Pátria, por outro lado, ele viria a possibilitar uma disseminação de sangue português por muitas casas reais europeias. D. Miguel espalhou Portugal pela Europa. Quem percorrer os rastos d’ El Rei D. Miguel nas cortes europeias não poderá deixar de concluir pela enorme dimensão do seu reinado, que se prolongou muito para além dos anos em que governou. Muitos são os descendentes d’El-Rei D. Miguel dispersos pela  Europa, como muitos são os descendentes de D. Miguel presentes em Portugal, e que hoje quiseram estar aqui num gesto de perdão e de reconciliação.

SAR o Senhor Duque de Bragança, e seu filho o Príncipe da Beira, descendentes simultaneamente de El-Rei D. Miguel e de El-Rei D. Pedro IV, são hoje a personificação dessa reconciliação histórica e do desejo que não volte a haver em Portugal nem guerras civis, nem vencidos e vencedores, nem exílios ou desterros, mas que a pátria seja, cada vez mais, casa comum de todas as gerações de portugueses.
Assim Deus o permita!

1 Disse-o também Oliveira Martins: “O sentimento de encanto e mística esperança que o povo deu a D. Sebastião, reaparecia agora a favor de D. Miguel” (I, p. 293)
2 Teresa Mónica, Errâncias miguelistas, Lisboa, Cosmos, 1997
3 Citado por Fernando Campos, O pensamento contra-revolucionário em Portugal, Lisboa, 1931, II, p.25
4 António Sardinha, Teoria das Cortes Gerais,
5 L’Ancien Regime et la Revolution, p.31
6 Luz Soriano, História da Guerra Civil, citado por Teresa Mónica, Errâncias miguelistas, Lisboa, Cosmos, 1997
7 Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, Lisboa, vol. I, pp.119-120
8 Ibidem,vol.I, pp.339-341

 Manuel Braga da Cruz 


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