Ele próprio uma força da natureza, aos 90 anos Gonçalo Ribeiro Telles continua activo e atento aos problemas no nosso País, e muito preocupado com a falta de debate sobre o que verdadeiramente importa. «A utopia e os pés na terra», título de um livro que o Museu de Évora lhe dedicou em 2003, reunindo alguns dos seus escritos, condiz na perfeição com o espírito deste Mestre que tanto dignifica a causa monárquica e que tivemos o prazer e a honra de receber e entrevistar na sede da Real Associação de Lisboa de que é activo sócio.
A reforma administrativa proposta pela troika quer reduzir o número de municípios portugueses e agregar juntas de freguesias. Que pensa disso?
Cortes geométricos feitos em função da população não têm a mínima sustentação, e essa reforma administrativa de nada valerá se não for ao cerne do problema. É que tudo isso tem de partir de uma verdade, que é a das nossas regiões naturais e históricas. A História conta muito…
Foi o que propusemos em 1982 [Regionalização: uma proposta do Partido Popular Monárquico, 17 pp.]: reunir os concelhos actuais em 50 regiões naturais, organizadas em 15 confederações de municípios no Portugal continental. Regiões naturais: Alto Minho, Lima, Cávado, Ave, Sousa, Alto Tâmega, Terra Fria, Terra Quente, Miranda, Baixo Tâmega, Panoias, Douro Sul, Alto Douro, Baixo Vouga, Gândaras, Bairrada, Baixo Mondego, Leiria, Viseu, Dão, Arganil, Serra, Guarda, Pinhal da Beira, Alto Mondego, Castelo Branco, Extremadura, Santarém, Tomar, Borda d'Água Ribatejana, Abrantes, Sorraia, Portalegre, Avis, Caia, Évora, Estremoz, Alentejo litoral, Portel, Beja, Guadiana, Algarve, Termo de Lisboa, Outra Banda, Baixo Sado, Terras de Santa Maria, Gaia, Porto-cidade, Maia, Vila do Conde e Póvoa do Varzim. E como confederações, ou regiões administrativas: Minho, Trás-os-Montes, Douro, Litoral atlântico, Beira Alta, Beira Interior, Beira Baixa, Extremadura, Ribatejo, Alto Alentejo, Alentejo central, Baixo Alentejo, Algarve, área metropolitana de Lisboa e área metropolitana do Porto.
As regiões naturais estão estabelecidas em função do povoamento, da defesa dos solos agrícolas e das reservas naturais. São definidas por condicionalismos mesológicos e biológicos. São elas que devem comandar os municípios, para que haja independência na rede de aldeias e lugares, e abastecimento de proximidade de frescos, carne e leite. As bacias hidrográficas são, digamos assim, a cosedura natural dos municípios. As confederações facilitam os transportes, a administração, etc.
O agrupamento das juntas de freguesias rurais é já um problema de povoamento, porque as juntas de freguesia dependem das aldeias, que estão a morrer pelo abandono da agricultura. A administração pública deveria estruturar-se de modo a que fosse possível articular o ordenamento biofísico e demográfico com o planeamento económico e social e corresponder à realidade física e histórica das regiões naturais.
Aqui e acolá, apesar de tudo, coisas boas estão a ser feitas...
Muito pouco. Então não vê que deixaram que a agroquímica estragasse os barros de Beja? O dinheiro das celuloses está, na verdade, a sair-nos muito caro. A situação é gravíssima e a incompetência dos partidos políticos, de uma forma geral, é enorme. Não discutem sequer o florestamento idiota, sem qualidade de vida, e a agricultura foi abandonada porque os seus lucros não são tão imediatos. É preciso dar a cada parcela de terreno a utilização mais conforme com as suas potencialidades naturais. E entender o agricultor como verdadeiro guardião dos campos, serras e matas — do espaço rural cuja beleza, equilíbrio e estabilidade geram benefícios de ordem cultural, social e física. Temos de pensar em termos de dignificação do homem e de valorização da terra. Em zonamento ecológico e em paisagem humanizada, tendo em vista o ordenamento dos elementos essenciais ao equilíbrio biológico, à estabilidade física e à distribuição e escolha adequada das culturas e dos gados. Há que procurar a melhor distribuição das matas, dos prados e das terras de sequeiro e regadio, identificando a melhor aptidão para as diferentes culturas, promovendo uma agricultura que intensifique o uso da terra pela construção de uma paisagem equilibrada biologicamente. Num país como o nosso, com um mosaico geográfico muito variado, onde são muitas as serras, as charnecas e as costas com magníficas paisagens humanizadas, os parques naturais são um dos instrumentos eficazes de uma política de desenvolvimento e de ambiente.
As cidades estão, de certa forma, a apodrecer.
Veja o que se passa com as áreas metropolitanas. Qual é a cidade que persiste sem uma relação íntima com a agricultura? O problema das cidades é o do território; deixou de falar-se de agricultura, prefere-se a falsa floresta, que usa terrenos de qualidade agrícola para obter lucros imediatos.
Dependemos alimentarmente...
Os cereais, é trágico! Mas nenhum partido quer falar disso. Não têm sequer noção do que se passa. Permitiu-se a construção na lezíria de Loures, na lezíria de Faro, e agora há este caso das terras muito férteis da Costa da Caparica… As melhores terras de cultura foram ameaçadas, em muitas regiões, pela especulação dos preços de terrenos para construção.
Não será esta trágica crise financeira uma oportunidade especial para se reavaliar tudo isso?
Nenhum político quer discutir verdadeiramente. O primeiro problema começa no uso do território, que é uma discussão de que todos fogem: a falta de agricultura e a pressão da falsa floresta (povoamentos monoespecíficos de pinheiro-bravo ou de eucalipto), que acabaram com a agricultura de sustentabilidade que levou à extinção das aldeias. Esse é que é o problema grave: não se faz um país com base na especulação da celulose e dos terrenos para construção urbana. O crescimento concentrado desencadeia, por sua vez, obras que só encontram justificação numa falsa imagem de progresso criada pela propaganda sistemática dos vícios da sociedade de consumo.
Os políticos falam muito de exportações, mas não das importações. Ora, as importações do que é essencial aumentam diariamente, e querem compensar isso exportando parafusos e coisas assim. Os presidentes de câmara são analfabetos, e a Universidade é um problema gravíssimo em Portugal, porque vive de sectores artificiais, visando dar «empregos», e não está aberta a estas discussões.
Como as aldeias fecharam e os muros de pedra seca para suporte da agricultura em relevo ou de vedação (e lembro que Portugal é 80 % montanhoso) deixaram de ter interesse, aparecem uns senhores a comprar essas pedras, e toda a noite desaparecem muros que são levados para Espanha. Já ando a falar disto há uns quatro ou cinco anos. Ninguém me quer ouvir.
Portugal tem, antes de tudo, de reencontrar a sua identidade social e cultural. Não pode subsistir alicerçado numa sociedade de consumo. Ruralidade e Mar é o binómio que determina a nossa existência como povo e nação.
Entrevista publicada no Correio Real, 7 de Novembro de 2011, por João Távora e Vasco Rosa
Fonte: Real Associação de Lisboa
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