terça-feira, 27 de agosto de 2013

Obrigado, dr. Cunhal!

Devo à amabilidade de um médico amigo e vizinho a posse de um exemplar de O aborto, causas e soluções, tese de licenciatura apresentada por Álvaro Cunhal, em 1940, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Celebrando-se neste ano o centenário do nascimento do mítico secretário-geral do Partido Comunista Português, quero desde já associar-me a essa tão venturosa efeméride.
Três principais motivos justificam esta homenagem, que parece contradizer a minha condição de sacerdote católico.
O primeiro é de ordem familiar. Nessa publicação, Cunhal refere-se, em tom muito depreciativo, a um meu avô, também jurista e autor de O crime do aborto, obra contrária a todo e qualquer aborto, que já Santo Agostinho considerara "o mais abominável crime". Esclarecedora expressão que, por sinal, o Concílio Vaticano II fez também sua. Ora um ataque do líder histórico do PCP, por tão nobre razão é, para um crente cristão ou qualquer humanista, um elogio que, enquanto neto do dito precursor da defesa do direito à vida dos não-nascidos, não posso deixar de agradecer.
A segunda razão prende-se com uma reiterada afirmação do dr. Álvaro Cunhal: "O aborto é um mal. Nisto estão de acordo todos os escritores." Não satisfeito com esta condenação ética do aborto, o então finalista do curso de Direito afirmava ainda, peremptório: "o erro mais frequente dos que criticam a URSS é pensarem (por ignorância ou mentirem conscientemente) que as leis soviéticas consideram o aborto como um bem, defendendo-o e aconselhando-o. Nada mais errado." Mais ainda: o Conselho dos Comissários do Povo da finada URSS, por uma lei de 27 de Junho de 1937, "decidiu proibir a prática do aborto com excepção do aborto terapêutico, estabelecendo uma "crítica social" à mulher que o faça infringindo a lei e penas de prisão para os que o executem".
Sendo o aborto um mal, para Cunhal e, segundo ele, para "todos os escritores" que sobre este tema se pronunciaram, não faz portanto sentido defender um pretenso direito ao aborto, porque não há nenhum direito ao mal mas, quanto muito, algumas causas de exclusão da culpa por quem incorre nessa prática, em si mesma condenável.
Ainda mais curioso é que a lei soviética de 1937, não só proíbe a interrupção voluntária da gravidez, como impõe penas de prisão para a mulher que aborte! Um dos argumentos mais usados a favor do aborto livre é, precisamente, a necessidade de evitar a eventual prisão das grávidas que tivessem abortado. Pois bem, desiludam-se os que pensavam que essa lei repressiva, que urgia revogar, era mais um vestígio serôdio da legislação autoritária e machista do Estado Novo porque, na realidade, era uma das normas mais progressistas do nosso ordenamento jurídico, a julgar pela dita lei soviética que, já em 1937, exigia a "crítica social" das mulheres e "penas de prisão" para todas as que abortassem!
Por último, é muito de espantar que um aluno finalista de Direito, estando preso por ser comunista, apresente, numa faculdade da universidade estatal, uma tese em que não só faz a apologia do sistema soviético, como também defende abertamente a prática do que a legislação penal, então vigente, considerava um crime. E, não obstante o reduzido mérito científico do trabalho, o seu autor, por decisão, entre outros, do último chefe de Governo do anterior regime, obtém, como classificação global da licenciatura, a muito generosa nota de 16 valores!
Graças, portanto, ao dr. Cunhal, há que reconhecer que, não obstante o inegável e censurável carácter autoritário do antigo regime, havia também, ao contrário do que pretende uma certa historiografia moderna, alguma liberdade de opinião e de expressão nos meios universitários. Até porque, como se costuma dizer, contra factos não há argumentos.


P. Gonçalo Portocarrero de Almada


Fonte: Povo

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