“Exmo. Sr. Duque de Cadaval
Se meu nascimento, embora humilde, mas tão digno e honrado como o da mais alta nobreza, me coloca em circunstância de V. Exª me tratar por tu, caguei para mim que nada valho.
Se o alto cargo que exerço, de Corregedor da Justiça do Reino em Santarém, permite a V. Exª, Corregedor-Mor da Justiça do Reino, tratar-me acintosamente por tu, caguei no cargo.
Mas, se nem uma nem outra coisa consente semelhante linguagem, peço a V.Exª que me informe com brevidade sobre estas particularidades, pois quero saber ao certo se devo ou não cagar para V.Exª.”
Santarém, 22 de Outubro de 1795.
Pina Manique, Corregedor de Santarém.
Foi notícia a deliberação (por unanimidade!) da Assembleia Municipal (AM) de Torre de Moncorvo, do passado dia 27/6, em abolir os títulos académicos no seu seio.
Ufano, o respectivo Presidente (pelos vistos, este título ele mantém), engenheiro, perdão ex-engenheiro, digo, ex-engenheiro lá dentro e engenheiro (talvez) cá fora, de seu nome José Mário Leite, veio justificar a decisão na “óptica da democracia republicana e da Revolução Francesa, de onde saíram os princípios da Liberdade, Fraternidade, e Igualdade, passando todos os deputados a ser iguais.”
A gente já sabia que as novidades, antigamente, chegavam a Portugal – segundo diziam – com décadas de atraso; e mesmo tendo em conta que o ocorrido se deu em terras de Trás (quer dizer, atrás dos) – os – Montes, não deixa de pasmar – e isso sim seria a notícia – que a Revolução Francesa só agora chegue a Moncorvo, 225 anos depois!
Provavelmente já se esqueceram que os tais defensores da “Liberdade, da Fraternidade e da Igualdade” (paragem na escrita, para riso intenso), a quiseram exportar na ponta das baionetas e nos retalharam o país, o corpo, a fazenda e, até, a alma, entre 1807 e 1811 e deixaram umas sementes malditas, que nos ensanguentaram em guerra civil durante cerca de 100 anos (pausa para meditação profunda).
Parece que ainda não acabou…
Mas, aparentemente, a AM não tem mais com que se entreter e gasta tempo com estes rodriguinhos, a não ser que o edifício da AM se tenha transformado nalgum templo de inspiração maçónica. Quem sabe?
Só não entendo é porque em vez de se passarem a tratar por “deputados” e “vereadores” – outros títulos! – não se designam apenas por “cidadão fulano tal”; e se passaram a ser todos iguais, um não bastaria? Sempre se poupavam uns trocos…
A igualdade é uma das maiores mentiras postas a correr, pela simples razão de que somos todos diferentes.
A igualdade tem que ser vista e equacionada no respeito, consideração e justiça que cada ser humano deve merecer e não em querer transformar todos numa massa amorfa e indiferenciada, ou a querer tornar igual o que é naturalmente diferente (caso dos homens e mulheres).
Um título é uma diferenciação de habilitações que identifica melhor um determinado profissional. Que mal haverá nisso?
Será que o passo seguinte é o das pessoas passarem a ter vergonha do que conseguiram na vida?
Os títulos académicos não devem à partida ser adjectivados ou implicarem qualquer estigma ou preconceito. Mas, de facto, cada um dos seus titulares pode comportar-se relativamente a eles, num amplo espectro que vai da inveja à arrogância, passando pela vaidade.
Tais comportamentos têm a ver com a maneira de ser de cada um e não com o grau académico ou profissão que ostentam.
E o que é realmente importante não é o grau académico nem se há ofícios bons ou maus, melhores ou piores. O que interessa é saber se há bons ou maus profissionais.
Mas, enfim, em vez de se assumir tudo isto, naturalmente, gosta-se é de arranjar confusão e sarna para se coçarem…
O resultado tem sido o cada vez maior nivelamento, por baixo, tendo como consequência a imbecilização da sociedade e a menorização do ser humano.
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Outros exemplos têm vindo a medrar, desde há muito, como é o caso de jornalistas da Rádio e Televisão estarem sempre a forçar o “tu cá, tu lá” com o público, entrevistados, concorrentes a concursos, etc., sem que até hoje se tenha ouvido alguém colocar o jornalista no seu sítio, numa cobardia parola de não quererem parecer “démodés” mas antes muito modernaços; a prática de entrarmos num estabelecimento comercial qualquer, tratarmos o empregado por “senhor” e recebermos em troca um “você”; a de dizermos “bom dia” e ecoar o silêncio, mais a recente moda, possivelmente iniciada nos “call centers”, de tratarem os indígenas por senhor, seguido do primeiro nome, quando costume antigo sempre tratou os portugueses pelo apelido, reservando o nome próprio para a família próxima e a amiga intimidade.
Para já não falar nos pais que se querem assumir como “amigos” dos filhos, como se ser pai fosse ser inimigo dos mesmos…
Toda esta prática desregrada tem levado, não a uma informalidade saudável, uma franqueza de atitudes, ou a uma lealdade de relacionamento, mas sim a um relaxamento rasteiro e sem nível nas relações de trabalho, na educação, cortesia, e em todas as instituições, a começar pela escola, e já há muito atinge as próprias Forças Armadas e de Segurança.
A coisa arrisca-se a ficar fora de controlo e acabar tudo à chapada, pois onde não há regras a tendência imediata é voltar à lei da selva.
Os professores da maioria das escolas e Universidades que o digam.
Até nos hospitais militares houve uma tentativa – felizmente frustrada, até ver, apesar dos pecadilhos – de omitir os postos, alegando-se que ali só havia doentes, como se um doente perdesse o direito à sua personalidade jurídica ou passasse à categoria de número!
Por tudo o que disse e ficou por dizer, ninguém deve abdicar do tratamento a que tem direito, no mínimo porque o mesmo lhe deu muito trabalho a obter e aos outros não lhes custa nada…
A moda deste “relaxamento” social começou com a informalidade anglo-saxónica que, sem embargo, sabe distinguir o que é “bagaço” do que é “serviço – ao contrário dos latinos; teve um movimento uniformemente acelerado com os diferentes movimentos “hippy”, “pacifista”, “libertação das mulheres” e mais uns quantos “ismos” e explodiu com o “Maio de 68”, em França.
Entre nós entrou de supetão, quando as comportas que seguravam as águas se romperam em 1974/5.
O que aconteceu em Portugal, porém, foi mais grave não só pela rapidez e anarquia em que tudo se passou mas, também, porque para além das transformações políticas e sociais visava derrubar qualquer tipo de hierarquia, logo de autoridade.
Nada foi feito inocentemente, pois intentava-se criar sobre os escombros algo de radicalmente diferente: uma sociedade comunista, socialista, terceiro-mundista, maoísta, ou o raio que os partisse, o que só foi parado a 25 de Novembro de 1975.
Mas a tábua rasa da hierarquia e da autoridade manteve-se, porque servia por razões semelhantes a todas as forças políticas que despontaram e, sobretudo, para quem quis impor um jacobinismo serôdio, o laicismo e o relativismo moral. O que conseguiram.
Tudo isto facilitou o apoucamento e o controlo das instituições estruturantes da Nação e as manobras subterrâneas. Também não é por acaso ou incompetência, que nos últimos 40 anos não se conseguiu pôr de pé um Serviço de Informações minimamente credível.
Ora sem Autoridade – e esta não tem que ser adjectivada, simplesmente, existe ou não – nada se consegue edificar…
Resultou que todos os governos de que fomos servidos se limitaram a gastar e a vender o que havia e tudo o que construíram não foi com riqueza criada, mas com o dinheiro que pediram emprestado ou receberam da UE (e nunca houve almoços grátis).
Deixaram a sociedade à solta, tendo o cuidado de aspergir subsídios (enquanto foi possível), eleições e paz social, “oblige”.
Criaram uma mentira enorme, baseada na autocensura e na distorção da realidade, onde quem tinha um olho e má formação, foi roubando o que pôde.
E como tudo isto atingiu proporções inauditas, quase ninguém o quer ou pode admitir.
Resta a bancarrota que deixou de ser possível esconder.
Não estou a poupar nas palavras nem tenho receio de ser acusado de mentiroso.
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Mas voltemos ao “tratamento” para vermos como regredimos em termos civilizacionais e em educação.
Comecemos pela Igreja.
O Papa tem direito ao tratamento de “Sua Santidade”; um Cardeal a “Sua Eminência Reverendíssima”; um Bispo a “Excelência Reverendíssima” e um Padre a “Reverendíssimo”.
Quanto à realeza – cingimo-nos à portuguesa já que pelo mundo fora as designações variam – o monarca deve ser tratado por “Majestade” ou “Sua Majestade” e um Príncipe por “Vossa Alteza” ou “Alteza Real”.
Relativamente à Magistratura, um Juiz do Supremo Tribunal, vence o tratamento de “Colendo”; o do Tribunal da Relação é “Venerável” e o do Tribunal de 1ª Instância antecede de “Meritíssimo”. Já o Ministério Público tem “Procuradores”.
A Universidade fica-se pela designação de “Magnífico” dada ao Reitor, sendo os degraus académicos de “Professor Doutor” (com vários graus, e por extenso), para os Doutorados; “Mestres” para os detentores de um mestrado e de Dr. (sem ser por extenso), engenheiro, arquitecto, etc., em função das diferentes licenciaturas.
Já a Diplomacia reserva o tratamento de “Excelência” (por extenso) a Embaixadores e Ministros Plenipotenciários, e o de “Vossa Senhoria” para Encarregados de Negócios e Cônsules.
As coisas são assim e assim é que estão bem.
O problema é que tudo isto caiu em desuso e já quase ninguém quer saber de tais “peculiaridades pré-históricas”, ou sequer as conhece.
E as instituições, apesar de não as terem renegado, apenas usam o tratamento entre si (quando usam), e em discursos protocolares, numa espécie de circuito fechado e já só falta pedirem desculpa por o fazerem.
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Deixámos propositadamente a Instituição Militar para o fim.
Até 1974, o tratamento aplicado aos oficiais era o seguinte: Aspirantes, Subalternos e Capitães/1ºs Tenentes tinham direito ao tratamento de Vossa Senhoria a anteceder o posto, que já de si era acompanhado da palavra “Senhor” ou do característico “Meu”; os oficiais superiores venciam “Vossa Excelência”, bem como os oficiais generais; ao passo que “Sua Excelência” era reservado a Marechais e Almirantes.
Em 1977/8 – note-se que ainda funcionava o Conselho da Revolução, pelo que não houve aqui qualquer influência civil – a hierarquia militar deu um tiro nos pés (o que tem feito, infelizmente, amiúde), ao reformular o Regulamento de Continências e Honras Militares e retirou o direito à dignidade do tratamento a todos os oficiais, à excepção da atribuída aos oficiais generais, marechais e almirantes.
As razões por que o fizeram nunca foram explicitadas (creio), mas tal explica-se por todas as vicissitudes entretanto vividas e de que ainda hoje não recuperaram.
Já a população transmontana merecia melhor sorte (embora a sorte dê muito trabalho), mas ainda está a tempo de aprender com o antigo – e abençoado – Corregedor de Santarém.
Sem falar nas desgraças que nos aconteceram a partir de 1795 e no combate e perseguição que lhes tivemos que dar, para os correr de Espanha, e os perseguir até que se rendessem, o que só aconteceu em Toulouse, em 1814.
Ten. Cor. Piloto Aviador (ref.)
João José Brandão Ferreira