A marca deixada por uma civilização não se limita aos feitos de armas, aos homens de acção, às batalhas e à sucessão dos governantes, nem tampouco à construção de uma literatura, ao enriquecimento vocabular que trouxe, aos novos conhecimentos e técnicas que desencadeou, às instituições sociais e políticas e às leis que produziu. Se as culturas dividem, as civilizações juntam, pelo que nestas se produz aproximação e síntese de caracteres anteriormente separados pelo espaço e pelo gosto; em suma, um estilo.
A história de uma civilização é feita de homens e populações, pelo que há que a estudar e compreender mais nas pequenas manifestações, por vezes tão insignificantes que a elas pouca atenção conferimos. Nos hábitos e práticas quotidianas dos povos tocados por uma dada civilização, a gastronomia, cujo estudo só recentemente prendeu a atenção dos estudiosos, ocupa indiscutivelmente um lugar proeminente. Pode-se dizer, sem exagero, que a civilização portuguesa produziu a mais rápida e revolucionária mutação do gosto operada na história mundial desde o neolítico, pois que aquelas que antes se haviam produzido apenas graças à justaposição e proximidade de civilizações se tornou, após o início da Era Gâmica, numa verdadeira revolução planetária.
Oferecemo-vos hoje um exemplo singelo. Quando, ao passarmos por um restaurante alentejano, nos sugerem como sobremesa um prato de sericaia, esse manjar gabado por todos os roteiros turísticos e gastronómicos, não nos ocorre estarmos perante uma das mais fascinantes viagens do gosto existente na doçaria mundial. Com efeito, ao contrário do que supunha Sebastião Dalgado no seu Glossário Luso-Asiático, que lhe atribuía origem malaia, a sericaia é uma receita tailandesa, ali conhecida por Kanom Mokeng (ขนมหม้อแกง).
Após os primeiros contactos entre portugueses e siameses, a receita thai - com leite de coco, ovos, farinha e sal - transitou para Malaca, onde se começou a aportuguesar mas, volvidas algumas décadas, passou a Goa, onde ganhou um toque indiano mediante adição de uma pitada de canela. Por altura da governação de Dom Constantino de Bragança, a sericaia passou a doce de eleição na mesa do jovem Vice-Rei. Ao regressar ao Reino, em 1561, regressou pobre, tão pobre que até as autoridades desconfiaram que tivesse ocultado miríficas riquezas que jamais foram encontradas. Mas Dom Constantino trouxe um segredo culinário que logo passou às religiosas do convento Santa Clara de Elvas. Por incrível coincidência, a receita encontraria naquele convento a mais sábia das mãos. Ali vivia, no último quartel do século XVI, uma jovem religiosa oriunda de uma família nobre que tinha por escrava uma jovem siamesa. A rapariga, ao provar a sericaia das irmãs do convento, disse tratar-se do Kanom Mokeng. Encantada, a Madre do Convento pediu-lhe que preparasse a receita, mas não havendo à disposição os ingredientes do Sudeste-Asiático, aplicou-lhe leite, farinha, ovos e açúcar, substituindo o sal por limão.
Dois séculos volvidos, já a sericaia era há muito um prato da Corte de Lisboa, chegou ao Rio em 1808 após a transferência do governo. Popularizou-se, expandindo-se por toda a geografia brasileira, sendo deste então um dos mais elogiados acepipes da doçaria brasileira.
Asiática ? Europeia ? Brasileira ? Não, a sericaia é, por excelência, uma receita da Portugalidade.
Miguel Castelo-Branco
Fonte: Nova Portugalidade
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