A cena em questão era breve, mas esclarecedora. Um jovem pedia em casamento a sua amada, que recusava a proposta matrimonial, com o pretexto de que o importante é o amor. Surpreso, o pretendente ainda esboçou uma tímida defesa da instituição conjugal, que a sua Julieta destroçou, em nome da suposta hipocrisia dos formalismos jurídicos e rituais e, sobretudo, do supremo valor e espontaneidade do mútuo afecto, a que, por fim, também o dito Romeu se rendeu.
Não falta quem pense que a liberdade do amor não tolera os grilhões das imposições normativas e, daí, a profusão das uniões de facto, em detrimento do matrimónio, religioso ou civil. A moderna mentalidade antijurídica reage com violência contra o que entende ser a tirania dos direitos e obrigações decorrentes de um contrato, sobretudo quando se pretende aprisionar algo tão volátil e lírico como o amor. Que código pode definir, com justeza, a paixão? Que lei mede o impulso amoroso? Que negócio jurídico pode impedir um ser humano de seguir, livremente, o seu próprio coração? Liberte-se, pois, o sentimento das amarras do legalismo e devolvam-se ao amor as asas da mais plena liberdade e criatividade!
Esta atitude, muito comum entre a malta jovem, cada vez menos numerosa e mais imatura, pode ser uma solução para o grave problema laboral que a tantos, infelizmente, afecta. De facto, são legião os que não conseguem um primeiro emprego e, por isso, se vêem obrigados a emigrar, ou a uma frustrante inactividade. Ora a questão resolver-se-ia facilmente, se se arremetesse contra o farisaísmo do contrato de trabalho, tal como se derrotou, ao que parece com êxito, o pacto nupcial.
Por que razão muitas empresas resistem a admitir novos trabalhadores? Porque os encargos decorrentes da admissão de mais um assalariado são, por exigência do contrato de trabalho, excessivos. Com efeito, a entidade empregadora fica de tal modo onerada, ante o Estado, a Segurança Social e o próprio trabalhador que, muitas vezes, não é comportável um tal encargo financeiro.
Mas há uma fácil solução: basta desregular o compromisso laboral, em benefício dos agentes sociais, ou seja, substituir o contrato de trabalho tradicional pela união livre de patrão e operário. Se há liberdade, sem compromisso, para o amor, porque não para o trabalho?! Se o proletário é, etimologicamente, o que gera filhos e quem os faz faz por amor, reconheça-se-lhe a mesma liberdade, sem obrigações, na actividade laboral.
Que hipocrisia ir trabalhar quando não apetece nada! Que absurdo pagar um salário, quando não é isso que verdadeiramente se deseja e sente! Implemente-se, pois, a gestão por amor: o empresário deve ser livre, como libérrimo o assalariado. Este que apareça quando quiser, sem qualquer dever, e aquele remunere-o também quando e como entenda, sem imposição alguma, sem a tirania de umas cláusulas contratuais, que a volatilidade dos sentimentos pode ter tornado horrivelmente obsoletas. Que belo seria o trabalhador poder exclamar: "Trabalho onde e como o meu coração quiser!" Que romântico seria o patrão poder dizer, com aquela poética descontracção com que se troca uma esposa cinquentona por uma secretária de vinte e cinco anos: "Eu dou o ordenado a quem eu amar!"
Depois da revolução matrimonial, venha agora a revolução laboral. E quando, por fim, a humanidade se tiver libertado de todos os códigos morais e legais, não serão necessários mais contratos de casamento ou de trabalho porque, finalmente, na família e na sociedade, se observará, escrupulosamente, a lei da selva.
NOTA: No diário em tempos dirigido por José Saramago, um exaltado jornalista decidiu acusar-me de desonestidade intelectual, esquecendo que tudo o que aqui escrevi em "Obrigado, Dr. Cunhal!" foi o que o próprio líder comunista afirmou, ipsis verbis, na sua tese de licenciatura. Reverte assim a falsa acusação sobre quem a fez, a quem recordo, sem nenhuma animosidade pessoal, o que já disse: contra factos, não há argumentos.
Fonte: Povo
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