A notícia é conhecida e foi amplamente difundida: a 14 de Abril último, a seita islâmica Boko Haram raptou um numeroso grupo de raparigas cristãs, de 12 a 17 anos, de uma escola de Chibok, na Nigéria. Este país africano, que tem 170 milhões de habitantes, é riquíssimo, sobretudo pelas jazidas de petróleo, no sul, onde abundam os cristãos; pelo contrário, a zona norte, que é maioritariamente muçulmana, é mais pobre.
Abubakar Shekau, o chefe do bando terrorista pretensamente religioso que reivindicou o rapto das 223 menores, manifestou primeiro a intenção de as vender, como escravas; depois, a de as trocar por guerrilheiros seus, presos no país; e, ainda, a de as casar, à força, com muçulmanos. Recentemente afirmou que as reféns se tinham "convertido" ao islamismo…
Muitas nações repudiaram esta acção, condenando as autoridades nigerianas, cuja cumplicidade parece óbvia. Também a Igreja católica o fez, mas teme-se que estes apelos não tenham o condão de resgatar as adolescentes raptadas, nem o de garantir a liberdade aos restantes cristãos da Nigéria.
Não obstante as circunstâncias políticas e económicas do caso, este conflito tende a ser apresentado como uma guerra entre maometanos e cristãos, na medida em que os agressores são fundamentalistas islâmicos e, as vítimas, jovens cristãs. É a interpretação que mais interessa ao lóbi laicista, para assim poder concluir que qualquer religião é uma potencial ameaça à paz e à liberdade. Mas seria injusto considerar responsáveis por esta dramática situação todos os seguidores de Maomé, até porque também os há que são perseguidos, nomeadamente pelos Boko Haram. Infelizmente, nas milícias anti-islâmicas também há guerrilheiros aparentemente cristãos.
Qualquer crença deve supor um acréscimo de responsabilidade dos respectivos crentes. Por maioria de razão, o ministro de um culto, enquanto autoridade espiritual, está ainda mais obrigado à exemplaridade social, razão da reverência que lhe é socialmente tributada. Mas essa deferência não só não atenua a sua responsabilidade criminal como a agrava se, não obstante a sua missão espiritual, realizar actos objectivamente condenáveis. A condição religiosa não pode ser nunca sinónimo de impunidade, nem a justa punição de um crime cometido por um fiel releva nenhum desrespeito pela liberdade religiosa dos cidadãos.
Um crime, sejam quais forem as intenções do seu autor, é sempre um crime e, como tal, deve ser punido pelo Estado e pela comunidade internacional, a bem da justiça e da paz, mas também da liberdade religiosa e do bom nome das religiões. Tanto dá que seja um mullah ou um sacerdote católico, que rapte raparigas cristãs ou que abuse de menores.
Na Europa cristã, não obstante o privilégio do foro, um clérigo católico que cometesse um delito de certa gravidade era destituído da sua condição clerical e entregue à justiça secular, que sobre ele fazia recair a pena devida pelos seus actos.
Todas as religiões devem repudiar qualquer instrumentalização belicista do nome de Deus, assumindo um claro compromisso pela paz. As autoridades religiosas de todo o mundo devem ser as primeiras a defenderem os mais fracos e necessitados, mesmo contra os ministros do próprio culto, se necessário for. Essa foi, com efeito, a atitude de Cristo, que se posicionou sempre do lado das vítimas inocentes, opondo-se até, por vezes, às autoridades religiosas e civis do seu povo. Só assim a liberdade religiosa se pode afirmar como um baluarte dos direitos humanos e como garante, que é de facto, da verdadeira liberdade.
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Fonte: Povo
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