segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Eutanázis?

A legitimação do homicídio dos anciãos e dos doentes crónicos ou terminais significa a falência do modelo social humanista e um abissal retrocesso civilizacional.

Um amigo dizia-me há já algum tempo que, na Alemanha, nenhum partido se atreve a propor a despenalização da morte assistida porque a eutanásia nazi está ainda muito presente na memória do povo alemão. Se assim for, é de saudar que os malfadados fantasmas de Hitler, Himmler e Mengele sirvam para manter erguido esse bastião do mais fundamental de todos os direitos.
Um país, que cede no princípio da inviolabilidade da vida humana inocente, cruza a fronteira que o separa da barbárie. Permitir a eliminação dos doentes, dos velhos e dos não-nascidos é relativizar o valor dos seres humanos, sobretudo dos mais frágeis. A eutanásia e o aborto provocado, por mais que eufemisticamente pretendam ser, respectivamente, o exercício de um pretenso direito a uma morte digna, ou uma mera interrupção voluntária da gravidez, na realidade são, quer se queira ou não, homicídios voluntários.
Hitler foi um dos precursores da eutanásia: à chegada aos campos de concentração, os deportados eram submetidos a um processo de selecção, a que se seguia a eliminação dos que fossem tidos por inaptos. Um tal procedimento não é comparável com as actuais propostas relativas à morte assistida, porque esta há-de ser sempre, por ora, voluntária. Mas, que fazer em relação às crianças gravemente doentes e aos dementes? Se se admitir a possibilidade da sua eliminação, por uma decisão de terceiros, como já acontece em relação aos nascituros, a sua morte já não seria voluntária. A eutanásia, como o aborto provocado, são contrários ao humanismo cristão, que se define pela defesa da vida humana desde o seu começo, no momento da fecundação, até ao seu termo, ou seja a morte natural.
A aceitação do princípio da precariedade da vida humana inocente pressupõe um novo paradigma jurídico-político. A doutrina social da Igreja e as declarações universais dos direitos dos homens e dos cidadãos estabeleceram as bases do ordenamento jurídico humanista. A eventual legitimação jurídico-positiva do homicídio dos anciãos e doentes crónicos ou terminais e dos não-nascidos, mesmo saudáveis e concebidos por livre vontade dos seus progenitores, significa a falência do modelo humanista e um abissal retrocesso civilizacional. Na realidade, implica um regresso à lei da selva porque, como então, serão os mais fortes a prevalecer sobre os mais fracos, sendo estes os doentes crónicos e terminais, os mais velhos e os nascituros. Ora o direito tem precisamente por missão defender os mais débeis frente à prepotência dos poderosos: a tal está obrigado por um imperativo de justiça social. Caso contrário, como lembrava Bento XVI no parlamento alemão, pouco ou nada distinguiria o Estado de um grupo de malfeitores.
É verdade que algumas vidas humanas são penosas, sobretudo no seu termo, e por isso, não devem ser artificialmente prolongadas. Mas o encarniçamento terapêutico, que é eticamente condenável e que São João Paulo II terá recusado no final da sua vida, não pode servir de pretexto para que se introduza no ordenamento jurídico o princípio de que a vida humana é descartável. Admitir que o direito à vida, por razão da idade ou das capacidades do sujeito, pode ser relativizado, é criar um precedente para o extermínio de seres humanos politicamente indesejáveis por razão da raça, como aconteceu na Alemanha nazi, ou por motivos ideológicos, como ocorreu na Rússia soviética e na ditadura militar argentina.
Portugal pode-se orgulhar de ter sido um dos primeiros países a abolir a pena de morte, mas pode contradizer a sua tradição humanista se ceder à pressão dos grupos que promovem abertamente a eutanásia e que têm expressão na vida política, na comunicação social e na opinião pública.
Não será, por isso, despropositado recordar que menos de um século nos separa da barbárie nazi, responsável pelo extermínio de milhões de inocentes. Certamente, nem todos os alemães eram nacionais-socialistas, nem muito menos assassinos, mas a sua indiferença e a sua complacência com a política racista e eugenista de Hitler, e do seu pequeno grupo, permitiu um dos piores genocídios de que há memória na história da humanidade.

Fonte: Observador

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