A propósito da Caixa Geral dos Depósitos, muito se tem falado, nestes últimos tempos, sobre a verdade. Sem entrar na análise do caso concreto, nem em questões de natureza bancária ou partidária, vem a propósito tecer algumas breves considerações sobre a verdade e a mentira na política, sem fazer, como é óbvio, quaisquer julgamentos pessoais.
Em tempos de relativismo, tende-se a crer que a verdade não existe, porque não é mais do que uma mera narrativa. Contudo, segundo a clássica definição de Tomás de Aquino, a verdade existe e é a própria realidade enquanto presente ao entendimento. Assim sendo, é algo objectivo e real, não subjectivo nem virtual. A verdade é consubstancial ao conhecimento e o erro advém da falta de correspondência entre a realidade e o que dela se diz. Afirmar, consciente e voluntariamente, como verdadeiro o que é falso, com o intuito de enganar, é mentir.
A verdade é tão essencial à justiça que o juiz, só depois de proceder ao apuramento dos factos, pode deles deduzir a responsabilidade civil ou criminal. Também na política a verdade é relevante: um poder não fundado na verdade não pode ser legítimo, nem justo, como Cristo fez saber a Pôncio Pilatos (Jo 18, 28-39). Não é pois de estranhar que todos os regimes totalitários, como o nazismo e o comunismo, se fundem na mentira e impeçam o conhecimento da verdade, nomeadamente através da censura.
A mentira, como os chapéus, pode ser de muitos tipos. Pode-se mentir com meias-verdades e, até, com verdades inteiras. Foi o caso do imediato que, zangado com o comandante, escreveu no diário de bordo: hoje, o capitão não se embebedou. Era verdade, mas uma verdade mentirosa, porque levava a crer que todos os dias se embebedava aquele que, não só naquele dia como também nunca antes o fizera, ao contrário do que o imediato mentirosa e maliciosamente insinuara. Portanto, não mente apenas quem, consciente e voluntariamente, afirma algo contrário à verdade, mas também quem, pelas suas palavras ou silêncios, dá a entender alguma coisa falsa.
Não vale a pena cair no ridículo dos eufemismos, como “erro de percepção” ou outros, nem derivar para minudências casuísticas. Centrar a questão na natureza da mensagem – carta, telefonema, e-mail, sms, etc. – ou no tipo de documento – informático, material, etc. – é um preciosismo farisaico, que indicia artes e manhas daquele que é “mentiroso e pai da mentira” (Jo 8, 44). Também a este propósito, o ensinamento evangélico é claro: “a vossa linguagem deve ser: ‘sim, sim; não, não’. O que passa disso vem do maligno” (Mt 5, 37).
Outra questão é a da responsabilidade moral pelos actos próprios e alheios. Quem faz uma afirmação contrária à verdade é responsável por essa mentira, mas também devem ser responsabilizados, em termos éticos e políticos, os que, sabendo, deram cobertura a essa falsidade.
Conta-se que, em tempos que já lá vão, num país europeu que não o nosso, um ministro não sabia se devia permitir que alguns jornalistas estrangeiros tivessem acesso a dados do seu departamento. Para esse efeito consultou o chefe do governo, que lhe disse, laconicamente, que fizesse o que quisesse. Os repórteres foram admitidos, mas a reportagem que publicaram, depois de regressarem ao seu país, foi muito negativa. Na seguinte reunião do governo, como era de esperar, choveram as críticas sobre o ministro em causa, até que o primeiro-ministro pôs termo à discussão, dizendo que fora ele que autorizara a investigação jornalística. Poder-se-ia ter remetido a um cómodo e cobarde silêncio, deixando o ministro a arder, mas teve a dignidade de assumir que era sua a responsabilidade política e moral pelo acto do ministro, uma vez que lhe dera o seu aval.
Se alguém mentiu, deve ter a coragem de o reconhecer e de assumir as consequências óbvias. Se é grave faltar à verdade, grave é também ser cúmplice da mentira: se alguém lhe deu cobertura política, deve também aceitar a inerente responsabilidade, em nome da verdade e da dignidade do Estado. O principal ‘interesse nacional’ é a verdade: nenhum interesse económico, partidário ou pessoal pode legitimar ‘esquemas’ contrários à lei e aos mais elementares princípios éticos da governação.
Na vida, há senhores … e chicos-espertos. Na política, há estadistas … e os outros.
PS. Uma jornalista do DN, em artigo de opinião, insurgiu-se recentemente contra a presença de padres nas comissões de ética dos hospitais e na imprensa, como comentadores de temas da sua especialidade, como é o caso da presente crónica. Mais despropositado é, contudo, que jornalistas, sem especial formação em questões éticas, opinem sobre assuntos que não são do seu conhecimento. De uma jornalista generalista, ou seja não especializada em temas de religião e moral, esperam-se artigos de informação, porque os de opinião devem ser da exclusiva competência de quem recebeu uma formação específica sobre a matéria correspondente.
Fonte: Observador
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