Eu sou mais uma vítima dos incêndios! Só não sei se sou das que o governo ocultou, ou das que estão em segredo de justiça. Inclino-me mais para esta segunda hipótese pois, que eu saiba, ainda não apareceu o meu nome em nenhum jornal espanhol, nem em nenhuma lista oficial, nem sequer me foi proporcionado qualquer apoio psicológico, mesmo estando eu disposto a pagar a respectiva taxa moderadora.
Pois é. A verdade é que não ardeu nenhuma propriedade minha – que as não tenho – nem a minha casa foi pasto das chamas, nem eu próprio sofri qualquer queimadura, graças a Deus. Mas estou a arder de indignação pelo que, infelizmente, mais não é do que um triste espectáculo, um drama convertido numa tragicomédia. Pior ainda, uma falta de respeito pelas verdadeiras vítimas destas catástrofes, uma clamorosa falta de sentido de Estado das nossas mais altas individualidades, uma demonstração da notória incompetência dos nossos técnicos, que são peritos em enjeitar responsabilidades – como se sabe, a culpa é, oficialmente, dos raios e dos eucaliptos! – e em não saber pôr termo a uma tragédia que, todos os anos, se repete com dramática pontualidade. É de mais!
É de mais e … é gente a mais. E competência a menos. Não há sujeito, por insignificante que seja a sua função, que não apareça, que não intervenha, que não opine, que não chore ante as câmaras de televisão, que não bote faladura à frente dos microfones, que não se deixe fotografar junto das vítimas carbonizadas. Confesso que, nesses momentos, me apetece dizer a esses políticos, que procuram notoriedade à custa das desgraças alheias, o que uma vez Mário Soares disse aos agentes da autoridade: Desapareçam!
Não é menos triste, nem menos ridícula, a passagem de modelos dos nossos políticos na passerelle dos telejornais, exibindo o último modelo dos coletes reflectores. Porque fingem que são operacionais de sabe-se-lá-o-quê quando, pela certa, são apenas mirones que se passeiam pelo que tanto gostam de chamar ‘o teatro das operações’?! Sim, para eles, travestidos com esse disfarce carnavalesco, que finge uma competência que manifestamente não têm, tudo não passa de uma encenação, em que não faltam as lágrimas, as pungentes confissões de um sofrimento que, obviamente, não sentem. Porque a dor verdadeira vive-se, pelo contrário, no luto, no recato, no silêncio e, para os crentes, na oração. Ninguém pode ser culpado por não sentir como própria a dor alheia mas, pelo menos, respeitem quem está a sofrer e poupem-nos à triste figura de maus figurantes de uma péssima peça.
Outro excesso recorrente neste drama: para cada bombeiro em acção há, pelo menos, cinco porta-vozes. Se a percentagem fosse a inversa, um informador para cada cinco bombeiros, provavelmente não havia tantos incêndios, nem seria preciso tanto tempo para os apagar. Mas não, todos têm que aparecer, todos têm que dar o seu parecer, todos têm que falar: fala o governo, pela voz do primeiro-ministro ou da ministra da administração interna; falam as autarquias, pelas pessoas dos seus presidentes, seguramente em campanha eleitoral; fala a protecção civil; falam os bombeiros; fala a Guarda Nacional Republicana! Não só falam todos, em simultâneo, sobre o mesmo, como ainda se divertem a contradizer-se: o autarca diz que o incêndio está extinto, mas os bombeiros dizem que só parcialmente está em fase de rescaldo, enquanto a protecção civil garante o contrário. Para uns, o fogo é num município, mas para outros é no seguinte, onde já lavram as chamas. Às onze da manhã noticia-se que caiu um avião, mas ao meio-dia afirma-se que, afinal, não se despenhou nenhuma aeronave. Um incêndio extinto para uma entidade, está apenas em vias de resolução para outra, porque não há uniformidade na informação e todos querem ter voto na matéria. Todos falam e ninguém tem razão, porque falta autoridade e coordenação.
Em todo este drama, a Igreja católica deu, mais uma vez, uma nota de grande dignidade e de enorme discrição. Não apareceram bispos diante das câmaras da televisão ou à boca dos microfones, a querer ganhar protagonismo à custa dos incêndios. Não houve declarações incendiárias. Os párocos das freguesias afectadas tiveram a decência de não aparecer em público, de não chorarem na abertura dos telejornais, de não fazerem publicidade da sua dor, verdadeiramente sentida, porque muitas das vítimas eram ovelhas queridas dos seus rebanhos. No silêncio da sua dor e do seu silencioso serviço e efectivo apoio aos mais necessitados, crentes ou não-crentes, não exigiram taxas moderadoras mas ensinaram, mais com actos do que com palavras, que a verdadeira caridade cristã não consente qualquer exibicionismo: “não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita …” (Mt 6, 3).
Senhores governantes: por favor, desapareçam! Senhores porta-vozes do governo, das autarquias, da protecção civil e das forças de segurança: por favor, calem-se! Respeitem, por uma vez, as vítimas que não souberam salvar, o luto dos que choram os seus mortos, o pesar dos que tudo perderam. Por favor, respeitem essa dor que, mesmo não sendo vossa, é muito nossa também.
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