segunda-feira, 27 de maio de 2019

O que andamos a fazer na Europa?



Fujamos da Europa. O nosso lugar é no mundo. Aqui está a prova que tentam ocultar: fazer esquecer aos portugueses que estivemos na Ásia durante meio milénio, reduzir-nos a um obscuro e periférico lugar no canto extremo do ocidente da Europa dos negócios e dos colarinhos brancos. Venham à Ásia, visitem Goa, Malaca, Flores, Timor, Banguecoque e Macau e descobrirão a tamanha fraude em que nos deixámos enredar. A titulatura régia de outrora mantém plena actualidade: pela Graça de Deus, Rei de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc. Perdeu-se o Império mas ficaram as gentes fiéis a essa ideia de fraternidade universal que nenhum mercado pode destruir. Enfurece-me ver tanta ignorância adamascada, tanto pateta inteligente e tanto candidato a europeu convencidos da bondade do caminho da anulação em que entusiasticamente nos precipitámos. Ainda há tempo !A história é simples. No primeiro quartel do século XIX, os holandeses e os franceses foram simplesmente varridos do mapa político da Ásia. Portugal, se bem que Goa fosse ocupada pelos britânicos, recrudesceu a sua iniciativa, pois era aliado do Reino Unido e um precioso complemento para a acção comercial e diplomática da Companhia Britânica das Índias Orientais. Na década de 1820, durante a governação de Diogo de Sousa, Conde de Rio Pardo, Portugal lançou generalizada ofensiva e restabeleceu parcialmente a influência que detivera em finais do século XVII, nesse ainda tão mal conhecido período da regência de D. Pedro. Os dois grandes travões ao retorno de Portugal à Ásia após a independência do Brasil foram, gostemos ou não, a criação da cidadania – que privou os portugueses asiáticos de ligação formal ao corpo da nação – e logo de seguida a extinção das ordens religiosas, que mutilou para sempre a actividade missionária do Padroado no Oriente. Não obstante estes dois fenómenos, verifica-se pujante actividade comercial em torno dos bandéis portugueses espalhados ao longo das costas do Índico, do Mar da China e do Pacífico: da foz do Ganges ao Irrawady, de Penang-Malaca a Singapura, de Batávia a Macau, do Tonquin ao Sião, não esquecendo a consolidação do funcionalismo especializado colocado junto das cortes do Camboja, Birmânia e Sião.
Ao contrário do que recita sem fundamento a lenda negra da decadência – uma pecha comum à tão aclamada Geração de 70 – tínhamos os melhores administradores, os mais sagazes diplomatas, conhecíamos melhor a região que os britânicos, detínhamos a lingua franca, estávamos profundamente incrustados nas sociedades de acolhimento, não nos envolvíamos em conflitos militares possuíamos o tal estatuto de Potência Histórica que funcionava e garantia confiança dos interlocutores. Os britânicos, por seu turno, não representavam um Estado, mas uma companhia, a sua elite tropical era de baixa extracção e falha de preparação, desconhecia as línguas e dialectos locais e eram tidos como agressivos e concorrentes no domínio dos circuitos comerciais há muito estabelecidos: o junk trade chinês e as rotas marítimas que ligavam os negari islâmicos da Insulíndia ao golfo pérsico. Em mais de duzentas obras consultadas até ao presente – memórias e relatórios de viagens de britânicos, franceses, holandeses e germânicos que pelo Sudeste-Asiático passaram entre as décadas de 1810 e 1860 – o mesmo resultado: os portugueses estavam em todo o lado, mantinham entre sí vínculos e trocavam informações, batiam a concorrência, impediam o acesso de forasteiros aos seus santuários. Foi há pouco tempo. Esse capital de memória, se bem que afectado pelo colonialismo europeu na região, manteve-se e ainda hoje, na Índia, no Paquistão, no Sri Lanka, no Bangladesh, na Birmânia, Tailândia, Singapura, Malásia e Indonésia há quem reclame o traço distintivo da herança sanguínea portuguesa.
Ontem, uma agradável descoberta. Dez documentos de uma assentada relativos à chegada da embaixada que Francisco Isidoro Guimarães, Governador de Macau, encabeçou ao Sião em 1859. Comparando-a com os documentos referentes a britânicos, norte-americanos e holandeses, duramente negociados, com “talks about talks” que se prolongaram por anos entre as autoridades siamesas e sucessivos enviados, a embaixada de Portugal apareceu na foz do Chao Phrya, enviou notícia da chegada a Banguecoque e foi recebida. No primeiro acto solene, o Rei Rama IV (Mongkut) disse, satisfeitíssimo: “estávamos há vossa espera há anos e agora apareceram, meus bons amigos”. As negociações decorrem em meia dúzia de dias, sempre entre banquetes, representações teatrais e espectáculos de música, com as portas dos palácios e templos abertos em par a oficiais e marujos portugueses. Não houve resistência, medo e aquele ganhar de tempo que caracteriza a diplomacia dos asiáticos. Foi tudo assinado de cruz, regado com Madeira e juras eternas de amizade.
Se me fosse possível falar com o Primeiro-Ministro, dir-lhe-ia: “Excelência, não tenham medo, corram o risco, apareçam em Colombo, Dacca, Naypyidaw, Banguecoque e Phnom Pehn e digam-lhes aqui estamos, para restabelecer o que por ignorância quase deixámos cair no esquecimento”. “Para que servem embaixadas na Argentina, Áustria, Bulgária, República Checa, Chile e em Cuba, no Egipto, Finlândia, Irlanda, Sérvia ou na Grécia ? Realizam captação de investimento, a expansão do comércio português, elevam a capacidade negocial portuguesa ? Não tenham medo, invistam o esforço na Ásia nestas últimas décadas de hegemonia ocidental, preparem o futuro”.
Miguel Castelo-Branco

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