As Europeias são hoje. Os portugueses perguntam-se sobre a utilidade dos vinte e um afortunados que, eleitos amanhã, passarão os cinco próximos anos a receber duzentos e cinquenta mil euros anuais por trabalho que ninguém sabe exactamente o que é. O parlamento europeu não produz legislação própria, competência exclusivamente reservada à Comissão e ao Conselho – é mera assembleia de aprovação, um carimbo destinado somente a fornecer patine de legitimidade democrática aos mandos e desmandos de uma burocracia que nenhum europeu elege, que ninguém pode despedir e de que ninguém pode, em rigor, discordar com efeito. É verdadeiro mistério que organização tão avessa à vontade dos povos possa ter o atrevimento de a si mesma se chamar bastião de democracia. No fundo, tamanha bizarria só pode servir-nos para recordar o carácter orwelliano do nosso tempo, em que as fórmulas mais eloquentes e generosas servem quase sempre para esconder propósitos escondidos, e frequentemente sinistros.
Um pouco por toda a parte, as nações do continente obtêm consciência de que as suas democracias foram tomadas pelos gabinetes e transformadas em reles paródia do que seria um verdadeiro regime de liberdades. Compreende-se que a fachada democrática da União Europeia mais não é que logro tranquilizador, armado e mantido para que nações antigas e há muito habituadas ao auto-governo se não apercebam de que já não controlam os seus destinos. Quantos portugueses saberão que algo entre 70 e 85% da sua legislação já não é lavrada pelos seus representantes directos – os nossos parlamentares, que são aqueles que efectivamente elegemos e que efectivamente podemos punir – mas por comissários europeus cujo nome ninguém conhece? Lá fora, estas verdades vão sendo compreendidas, causando escândalo e gerando reacção. Fala-se, com razão, de uma Primavera dos Povos.
Ora, em Portugal mantém-se o inverno. Aqui, as Europeias continuam a servir de simples teatro para os partidos, usadas pelas chefias para recompensarem aliados e afastarem rivais no exílio doce dos vinte mil euros mensais de Bruxelas. Entre aqueles a que as sondagens atribuem hipótese real de eleição amanhã, não se conta um que tenha usado a campanha para falar do que se passa na Europa – e a União Europeia encontra-se, evidentemente, em processo avançado de degenerescência e desagregação – e do que será de Portugal se a União vier a cair. Nenhum candidato disse claramente que não toleraria nova cedência de soberania nacional a Bruxelas, ou pelo menos que novas cedências teriam de exigir plebiscito popular que as legitimasse. Nenhum lembrou que a UE, desprezada por cada vez mais povos e esmagada por crises várias (a da dívida na Itália, na Grécia, na Espanha e em Portugal, a dos migrantes nos países do Sul, a da Ucrânia a leste, a do Brexit a ocidente, a dos partidos soberanistas por toda a parte), pode ruir a qualquer momento, e que Portugal tem de preparar-se para todas as eventualidades. Nenhum deu o necessário murro na mesa, pediu a atenção da nação feita assembleia e anunciou que Portugal tem de recuperar já os instrumentos políticos (soberania política, diplomática, económica, financeira) que lhe permitam sobreviver à crise que se desenha. Ninguém, entre nós, quer ver a Europa é uma região gravemente doente, e que Portugal tem de virar-se para o mundo – o espaço de cultura portuguesa, ou da Portugalidade, a Ásia, o universo hispânico – para não acompanhar a Europa alemã para o abismo. Por cá, é como se o tempo tivesse parado. É a “excepção” portuguesa – excepção, hoje, no pior: na capitulação perante a adversidade, no medo do comprometimento e do discurso claro, na incapacidade de compreender as coisas novas. Se tudo correr mal, culparemos os eleitos de amanhã, o governo e os velhos partidos. Mas a culpa será do país em bloco, e dessa vergonha só nos salvaremos se o sono português não durar muito mais.
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