sexta-feira, 10 de junho de 2022

S. Anjo da Guarda de Portugal - HOMILIA DOS COMBATENTES, DIA DO ANJO DE PORTUGAL

 


1. A Sagrada Escritura contém um significativo pormenor literário sobre a diferente maneira de Deus e o Maligno abordarem o ser humano. Enquanto Deus, quando se aproxima de alguém, dialoga com a pessoa usando a forma afirmativa, ou então interpelando, ou simplesmente ordenando, mas também fazendo perguntas e lançando interrogações — por exemplo, quando procurava Adão perguntava «onde estás?» (Gn 3, 9) ou, no caso de Jesus, questionava aos que O seguiam «que procurais?» (Jo 1, 38), ou «rapazes, tendes alguma coisa para comer?» (Jo 21, 5) e ainda ao cego Bartimeu «que queres que eu te faça?» (Mc 10, 51) —, o Maligno, pelo contrário, usa sempre a forma afirmativa para falar e dizer o que entende. Nunca questiona, seja homem, seja mulher. Esta simples diferença literária encerra em si dois projectos diversos sobre o ser humano; duas prospectivas diametralmente opostas: enquanto a interrogação suscita redobrada atenção, capacidade de reagir, podendo até provocar uma atitude combativa na pessoa que é abordada, como sucedeu com Jacob e até mesmo com Moisés, a forma afirmativa de apresentar a mensagem, ao invés, apenas vem recebida passivamente e sem questionamento, induzindo à submissão.

De algum modo deparamo-nos aqui com o sentido profundo do combate. Combater exprime um projecto de humanidade assente na liberdade e para a liberdade. Só o ser humano que é livre ousa combater, ousa lutar, seja para defender os valores e a vida, seja para alcançar e realizar os ideais e horizontes de excelência para a humanidade.

Por isso, neste dia de memória aos heroicos combatentes portugueses, a nossa homenagem dirige-se, em primeiro lugar, àqueles que representam a nossa vocação, humana e lusa, de pessoas livres, que se sentem interpeladas pela história e pela vida a responder e a combater contra o mal, e contra tudo o que atropela a dignidade do ser humano e que lesa a Nação.

2. Na presença dos Combatentes, estamos perante pessoas que, na estruturação interior da sua afectividade, na hierarquia dos seus corações, o primeiro lugar, o centro das suas vidas nunca é ocupado por eles próprios. O Combatente foi e é alguém que sente os outros, os irmãos, a sua Pátria, o seu país, os seus camaradas. Por isso, estando a cultura dominante de hoje assente num exacerbado individualismo, onde cada um vive preferencialmente fechado em si próprio, a figura do Combatente coloca em crise tal cultura.

Evocando o momento sublime do evangelho (Lc 2, 8-14), cujo contexto são os pacíficos campos da Judeia onde pastam os rebanhos guardados pelos seus pastores e é anunciado a boa nova do nascimento do Salvador, descobrimos que esses pastores são pessoas que abdicam do seu bem-estar e que estão ali, e ali passam a noite, junto aos seus rebanhos, para os defender e combaterem todas as ameaças. É essa atitude dos pastores, de certo modo altruísta, que permite a segurança do rebanho. Mas fundamentalmente, Aquele menino apresentado como Salvador, Cristo Senhor, não é alguém que sempre recusou viver para si mesmo, mas foi todo para o Pai e se ofereceu para a salvação do mundo? Então, a Fonte que inspira os que hoje recordamos é profunda, pois é o próprio Cristo. E assim, na Sua peugada vemos surgir o contraste nítido entre uma cultura individualista, que sufoca e mata dentro das suas próprias prisões, e a cultura da solidariedade, da entrega, da alteridade vivida e promovida por quem verteu o seu sangue no campo da honra e cuja morte é semente de vida. O enorme memorial onde estão gravados os seus nomes constitui um desafio para a nossa sociedade. Obriga o ser humano de hoje a olhar para além de si próprio, a exemplo de Cristo e de quem deu a vida pela Pátria e por Portugal. Estes construíram a Nação que somos. Evocando Fernando Pessoa, somos do tamanho do que vemos e maiores que a nossa altura, e o que vemos é imenso porque olhamos longe, alcançamos o Céu, vislumbramos Deus nos horizontes do tempo, e afloramos a eternidade quando reencontramos os nossos semelhantes e, por eles, damos a vida:

“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura...”

3. Os mais recentes tempos de pandemia vieram despertar a sociedade portuguesa para a actualidade do espírito próprio dos Combatentes. Hoje estamos em condições de afirmar que foi esse espírito e essa mística que, tal como nas frentes de batalha travadas em São Mamede e Ourique, em Lisboa e Aljubarrota, na Flandres e no Ultramar, no Kosovo e na República Centro Africana, salvaram a vida, a dignidade e a honra de Portugal. Também na luta contra a pandemia do Covid-19, foram e são os Combatentes das Forças Armadas e as Forças de Segurança, Médicos e Bombeiros, pessoal de saúde e tantos homens e mulheres de boa vontade que têm salvaguardado Portugal da catástrofe e os portugueses da ruína e de mais atrozes mortes. E hoje, o nome desses combatentes da actualidade está gravado na memória de quem foi protegido e defendido por eles. Neste dia, a nossa homenagem é dedicada ao espírito heroico dos que em circunstâncias diversas, mas igualmente prementes, combatem o mal, combatem o inimigo da vida e lutam por Portugal e pelos portugueses.

4. A Palavra de Deus, neste dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, em que liturgicamente celebramos o Anjo de Portugal, revela-nos a figura do protector do mundo. É uma pertinente e bem actual concepção da humanidade. Sempre exposta à possibilidade do perigo, vai apreendendo, ao longo do processo da história, que tudo pode constituir uma ameaça à vida e à integridade do ser humano. Uma estupenda forma de dizer que para tudo e em todas as circunstâncias há necessidade de um defensor. O salmo clama alto e forte:

“Tu, que habitas sob a protecção do Altíssimo, moras à sombra do Omnipotente. Ele te livrará do laço do caçador e do flagelo maligno. Não temerás o pavor da noite, nem a seta que voa de dia; nem a epidemia que se propaga nas trevas, nem a peste que alastra em pleno dia. Nenhum mal te acontecerá, nem a desgraça se aproximará da tua morada. Porque o Senhor mandará aos seus Anjos que te guardem em todos os teus caminhos.” (Sal 91)

A mensagem de esperança que nos é oferecida pela Palavra de Deus reside, por um lado, na promessa de se estar protegido de todos os perigos e de nenhum mal acontecer, mas, por outro lado, essa promessa assenta na acção protectora de Deus. É pela sua obra salvífica, pela sua defesa do mundo exercida por intermédio dos Seus enviados e mediadores que cada homem e mulher pode experimentar o doce bálsamo da segurança e protecção. E, historicamente, nenhuma situação se presta tanto a ser experiência de salvação como o viver em paz e seguros; nada nos dá mais confiança na vida do que a certeza de existir Alguém que vela por nós.

Por isso, eleva-se o nosso louvor em modo de reconhecimento pelo dom daqueles que, embebidos da vocação a serem tudo para Deus e pelos irmãos, geraram nos portugueses um sentimento de amparo. E quem foram e quem são? São os que, de forma abnegada, se colocaram e colocam ao serviço de Portugal e dos portugueses, os quais reconhecemos como obreiros que colaboram na boa obra redentora de Deus. Investido da sublime vocação de materializarem a protecção de Deus, a autenticidade e radicalidade com que se entregam ao serviço da Nação suscita nas pessoas o tão apreciado espírito de confiança.

5. O Evangelho escutado (Lc 2, 8-14) constitui um derradeiro momento de esperança para a humanidade, enquanto celebra e assinala o nascimento do Salvador. Uma boa nova que foi levada pelos anjos, aqueles que, na revelação bíblica têm, entre outras funções, a de protegerem e guardarem a humanidade. Nesta missão, encontramos a realização da profecia escutada na primeira leitura quando o próprio Arcanjo Miguel, chefe das miríades angélicas, surge na frente do combate contra a desilusão e o desespero: “Então Miguel, um dos chefes principais, veio em meu auxílio. Eu estive lá, a fazer frente ao chefe dos reis da Pérsia, e vim para te explicar o que vai suceder ao teu povo, no fim dos tempos”. E o que sucedeu foi a vinda do Messias ao mundo para salvar a humanidade. A sua chegada e presença no meio de nós restaurou a esperança, deu um novo alento ao fluir da história e um novo ânimo se estabeleceu no coração da humanidade. Um velho cântico italiano diz que hoje somos nós as mãos de Cristo, os seus pés, os seus olhos, os seus braços. Ou seja, a nossa presença de homens e mulheres de boa vontade no seio da sociedade é a principal fonte de esperança, como o foram os heróis que hoje recordamos e homenageamos e que elevaram e elevam bem alto, com o seu exemplo inspirador, o fogo do alento da Nação. Na sua atitude, o povo intuiu a presença daquilo que sedimenta a chama da confiança no presente e no futuro da humanidade e de Portugal: a existência de pessoas que não se resignam ao mal, nem à mediocridade, mas combatem-nos, confiando em Deus, o supremo Bem, e no ser humano, criado à sua imagem e semelhança. E, hoje, somos nós, cada um de nós, os chamados a não ter medo dos desafios da história, e a irradiar a alegre notícia da redenção da humanidade por obra do amor oblativo de Jesus Cristo. Acolhamos a sempre renovada interpelação de Camões:

"E se te move tanto a piedade//Desta mísera gente peregrina,//

Que só por tua altíssima bondade,//Da gente a salvas pérfida e malina,

Nalgum porto seguro de verdade//Conduzir-nos já agora determina,

Ou nos amostra a terra que buscamos,//Pois só por teu serviço navegamos." (C II, 32)

São Nuno de Santa Maria e Santo Anjo de Portugal, rogai por nós.


+ Rui Valério, Bispo das Forças Armadas e Forças de segurança


Fonte: O Adamastor

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