O fenómeno da “rampa deslizante” sempre preocupou aqueles que são contra a despenalização e legalização da morte medicamente provocada, seja por via do homicídio a pedido da vítima, seja da ajuda ao suicídio (ambos aqui designados, para facilitar, pelo termo “eutanásia”).
A experiência ocorrida nos (poucos) países em que a “eutanásia” está legalizada tem demonstrado que o fenómeno da “rampa deslizante” se tem verificado em dois planos distintos: por um lado, a lei é muitas vezes aplicada fora dos casos nela previstos, sem que haja qualquer fiscalização e/ou sem que haja condenação dos responsáveis pelas mortes (ilegalmente) executadas.
Por outro lado, depois de ser aberta a porta desta cultura de morte, a lei tem sido alterada e ampliada, por forma a alargar progressivamente o seu âmbito de aplicação, por exemplo, a doentes não terminais, a menores de idade, a doentes mentais, a deficientes, a incapazes ou sem que exista pedido expresso (e, no limite, tudo indicia que nalguns países poderá mesmo vir a ser alargada a pessoas não doentes mas apenas cansadas de viver).
Confesso que, perante o texto dos vários projectos de lei que foram apresentados na Assembleia da República, tanto na anterior como na presente legislatura, o fenómeno da “rampa deslizante” nunca foi a maior das minhas preocupações.
E nunca o foi porque, nos referidos projectos de lei, a amplitude dos casos à partida admitidos, a enorme falta de rigor do procedimento administrativo estabelecido e a ausência total de fiscalização, controlo e garantia do cumprimento das próprias condições fixadas na lei a tempo de evitar a produção do dano irreversível de morte, já constituíam (e constituem) preocupações suficientes a ter no presente, sem ter de me estar a (pre)ocupar com o que iria acontecer no futuro.
Nessa medida, sempre considerei que aquilo que nos devia realmente preocupar (nesta fase) não era o da lei da “eutanásia” (inevitavelmente) poder vir a ser aplicada a casos nela não previstos ou poder vir a ser objecto de posteriores alterações e ampliações, mas sim o de essa lei vir a ser aplicada aos casos e nas condições e termos nela previstos, se efectivamente um dia a lei viesse a entrar em vigor.
Sucede que, afinal, eu estava errada, ainda que só parcialmente. E estava errada porque ainda antes de a lei ser aprovada pelos deputados, na presente legislatura, em votação final global, já a “eutanásia” está a deslizar pela rampa abaixo e a uma velocidade muito preocupante.
Com efeito, depois de terem sido aprovados na generalidade, no passado dia 09.06.2022, os quatro projectos de lei foram, em sede de discussão na especialidade, substituídos e reunidos num único texto – o chamado “Texto de Substituição”, de 10.10.2022 – que foi subscrito por deputados do PS, IL, BE e PAN, e cuja votação, na especialidade (à data em que escrevo este artigo), está agendada para a reunião da 1ª Comissão marcada para o dia 30.11.2022 (sendo expectável que a votação final global ocorra na sessão Plenária do dia 02.12.2022 ou então do dia 09.12.2022).
Importa mencionar que o referido Texto de Substituição assenta no projecto de lei do PS (analisado no meu anterior artigo intitulado “Na eutanásia socialista, a morte não é antecipada, é executada”), relativamente ao qual foram introduzidas algumas alterações (mais precisamente, no nº 1 do art. 3º e no nº 1 do art. 5º) e feitos alguns aditamentos (os novos nºs 5, 7 a 9 do art. 4º, nº 2 do art. 6º, nº 3 do art. 7º, nºs 4 e 5 do art. 25º e o art. 32º).
E é precisamente neste Texto de Substituição que o fenómeno da “rampa deslizante” já se está a manifestar, através da ampliação dos casos à partida admitidos, da imposição de prazos irrealistas e da descaracterização e aligeiramento do procedimento administrativo de morte instituído. Vejamos sucintamente porquê:
1 A palavra e ideia de “antecipação” da morte foram totalmente eliminadas do texto da lei (em conformidade, aliás, com o que já constava do projecto de lei do PS), uma vez que nem a lesão, nem a doença terão de constituir motivo ou causa provável, e muito menos certa, da morte pedida e, a final, medicamente provocada.
Daqui resulta que o procedimento de morte medicamente provocada (erradamente chamado de “morte medicamente assistida”, nunca é demais repetir) deixa de ser um procedimento de “antecipação” da morte, o que pressupunha uma relação ou nexo causal, menos forte ou mais forte, com a lesão ou com a doença, para passar a ser um mero procedimento de execução da morte pedida e médica e intencionalmente provocada.
2 O requisito da existência de uma situação de “sofrimento intolerável” que estava previsto no art. 3º foi substituído por “sofrimento de grande intensidade”, o que acarreta uma clara desvalorização deste requisito (e recorde-se que o sofrimento poderá ser não apenas físico, mas também psicológico e espiritual);
3 No que se refere ao requisito da doença, em detrimento de se exigir a existência de uma “doença incurável e fatal”, opta-se por se exigir (apenas) uma “doença grave e incurável” – a doença fatal é, assim, substituída por doença grave -, o que irá alargar de modo muito significativo e preocupante o elenco das doenças que permitirão o recurso à morte medicamente provocada (abrangendo, por isso, também, as doenças crónicas).
A este respeito, cumpre referir que a definição que é dada na al. d) do art. 2º de “Doença grave e incurável: doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade” inspirou-se (com excepção da referência ao sofrimento) na definição do âmbito de aplicação da Lei nº 31/2018, de 18.07, que estabelece um conjunto de direitos das pessoas em contexto de doença avançada e em fim de vida, constante do seu artigo 2º que dispõe o seguinte: “Para efeitos da presente lei, considera-se que uma pessoa se encontra em contexto de doença avançada e em fim de vida quando padeça de doença grave, que ameace a vida, em fase avançada, incurável e irreversível e exista prognóstico vital estimado de 6 a 12 meses” (art. 2º da Lei 31/2018
Contudo, ao contrário da citada norma inspiradora, não foi incluída, na definição de “doença grave e incurável”, a importante parte final relativa à existência de um prognóstico vital estimado de 6 a 12 meses, o que revela, mais uma vez, que neste procedimento de morte a doença não terá de ser causa possível ou provável de morte (não se exigindo que a doença seja terminal e nem sequer fatal);
4No novo nº 5 do art. 4º é estabelecido um período / prazo mínimo de dois meses para que seja possível a concretização da morte pedida, não podendo a mesma ocorrer dentro do mesmo, e isto sem prejuízo dos (novos) prazos fixados no Capítulo II.
Sucede que, ao mesmo tempo, são também fixados ex novo prazos máximos para a emissão do parecer do médico orientador (20 dias a contar da abertura do procedimento, cfr. art. 5º, nº 1), do parecer do médico especialista (15 dias, cfr. art. 6º, nº 2) e, quando haja lugar ao mesmo, do parecer do médico especialista em psiquiatria (15 dias, cfr. art. 7º, nº 3).
Isso significará que, não sendo o parecer do médico psiquiatra obrigatório e tendo a Comissão o prazo de 5 dias para emitir o seu parecer (cfr. art. 8º, nº 1), os prazos fixados para a emissão dos vários pareceres (médico orientador 20 dias, médico especialista 15 dias e Comissão 5 dias) somarão precisamente dois meses (todos os prazos serão contados em dias úteis, cfr. novo art.32º). Ou seja, os prazos mínimos e máximos fixados para o procedimento poderão ser praticamente coincidentes.
Mas mais importante ainda, os prazos máximos fixados para a emissão dos vários pareceres são manifestamente insuficientes para a emissão séria, fundada e fundamentada dos mesmos, dado que será impossível verificar e comprovar, dentro desses prazos, que o doente cumpre todos os requisitos previstos na lei para a sua morte ser provocada, ou seja, que a vontade do doente é uma vontade actual, séria, livre e esclarecida, que o doente está em situação de sofrimento de grande intensidade e que o doente padece de uma lesão definitiva de gravidade extrema ou de uma doença grave e incurável;
5Nos novos nºs 7 a 9 do art. 4º é assegurado ao doente o acesso a acompanhamento por parte de um especialista em psicologia clínica, sendo o mesmo obrigatório, salvo se o doente o rejeitar expressamente.
Contudo, não se prevê uma avaliação psicológica obrigatória do doente, nem a emissão do respectivo parecer por parte do psicólogo, nem sequer se prevê o registo e a integração no RCE (“Registo Clínico Especial”) do acompanhamento e dos actos e consultas efectuadas pelo psicólogo.
Ora, sem avaliação e parecer obrigatórios por parte de um psicólogo não será possível verificar e confirmar se o doente cumpre o requisito respeitante à sua vontade, vontade essa que terá de ser actual, séria, livre e esclarecida; e sem o registo no RCE do acompanhamento por psicólogo, não será sequer possível comprovar se o mesmo efectivamente ocorreu;
6Apesar de tal ter sido insistentemente reclamado/sugerido nas audiências públicas realizadas, continua a não se prever a emissão obrigatória de um parecer por médico especialista em psiquiatria.
Ora, sem uma avaliação e parecer obrigatórios por parte de um médico psiquiatra não será possível verificar e confirmar se a vontade do doente é uma vontade actual, séria, livre e esclarecida e/ou se o doente tem uma doença mental ou se é portador de uma perturbação psíquica ou condição médica que afecte a sua capacidade de tomar decisões.
Quer isto significar que a “eutanásia” poderá ser pedida por pessoas com doenças ou distúrbios mentais e/ou cuja vontade não seja actual, séria, livre ou esclarecida;
7Apesar de tal ter sido insistentemente reclamado/sugerido nas audiências públicas realizadas, continua a não se prever a informação/participação obrigatórias dos familiares do doente no procedimento de morte, estando as mesmas dependentes de autorização do doente.
A exclusão dos familiares do doente deste procedimento administrativo (e não clínico, onde não existe qualquer obrigação de sigilo profissional médico) não se mostra conforme com o nível de tutela e protecção da família, e dos seus membros, previsto na Constituição, nomeadamente no seu art. 67º (vale a pena ler a este respeito o documento “Posição de diversas Associações de defesa e apoio da Família em Portugal sobre a Lei da Eutanásia”, de 27.01.2021);
8Por fim, no novo nº 4 do art. 25º estabelece-se ex novo o prazo de 20 dias a contar da data de entrada em vigor da lei para a designação dos membros da Comissão de Verificação e Avaliação e no novo nº 5 do art. 25º determina-se que a Comissão entra em funcionamento no primeiro dia útil seguinte ao termo desse prazo ou logo que tenham sido designados todos os seus membros.
Sucede que, em circunstância alguma, a Comissão poderá entrar em funcionamento sem que estejam designados todos os seus membros, não podendo a Comissão, além do mais, tomar deliberações sem a presença da maioria do número legal dos seus membros (conforme dispõe o art. 116º, nº 2 da Constituição).
Em suma, no Texto de Substituição os deputados seus proponentes não só mostram o que não querem e o que verdadeiramente querem (e provavelmente sempre quiseram) – não querem despenalizar e legalizar a “eutanásia” apenas em casos excepcionais ou especiais, mas permiti-la a todas as pessoas que, manifestando uma vontade e decisão nesse sentido, tenham uma lesão definitiva de gravidade extrema ou uma doença grave e incurável -, como aumentam e agravam as inconstitucionalidades de que enferma este diploma.
E são tantas essas inconstitucionalidades que, aprovado o texto pelo Plenário da Assembleia da República, o Senhor Presidente da República não terá outra alternativa que não seja enviar o diploma para o Tribunal Constitucional, requerendo a apreciação preventiva da constitucionalidade de muitas das suas normas, pois só assim cumprirá a sua função, obrigação e dever constitucionais.
Espero sinceramente que desta vez o Senhor Presidente da República não se precipite e faça um pedido bem feito. É que um mau pedido de fiscalização é responsável por um mau acórdão e um mau acórdão poderá ser responsável por uma péssima lei. E digo péssima, porque má sempre o será, caso venha a ver as trevas do dia.
Termino, repetindo aquilo que escrevi anteriormente: espero que o Presidente da República faça um bom pedido de fiscalização por uma questão de respeito à Constituição da República Portuguesa, aos portugueses e a Portugal. E se na sua decisão voltar a não pesar (como em tempos afirmou) qualquer posição religiosa, ética, moral, filosófica ou política pessoal – apesar de ter sido eleito e reeleito Presidente da República por causa das suas posições pessoais (ou apesar delas) –, então espero que pese na sua decisão aquilo que é, seguramente, o sentimento dominante na sociedade portuguesa, a recusa da morte a pedido e a defesa intransigente da VIDA, de todas as vidas, especialmente daquelas que mais precisam.
Teresa de Melo Ribeiro, Advogada, Mandatária da Iniciativa Popular de Referendo #simavida sobre a (des)Penalização da Morte a Pedido
Fonte: Observador
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