segunda-feira, 22 de maio de 2017

Sobre Espanha e a Restauração de 1640



Pela morte formosíssima de D. Sebastião, em Alcácer Quibir, em 1578, o trono de Portugal ficou virtualmente vago, pois o Cardeal D. Henrique, pelo seu estado e pela sua idade, não podia assegurar a continuidade da dinastia. E pelo seu falecimento em 1580, a Corôa portuguesa, ocupada desde o seu início, em 1128, pelo Rei de Portugal, estava à mercê do mais forte: o mais forte era, nesse tempo, D. Filipe II de Castela. E o Estado português teve que suportar a afronta de passar a ser dirigido e governado pelo Rei castelhano.

Durou a afronta, que ainda hoje nos vexa e revolta, sessenta anos...

Em 1640, Portugueses leais, na Nobreza, no Clero e no Povo, agrupado à volta do Duque de Bragança, D. João, português de melhor têmpera, e diplomata da melhor escola, repetiram a façanha dos seus Antepassados de 1128.

Se estes repeliram e expulsaram da terra portuguesa, os galegos e leoneses seus inimigos, os portugueses de 1640 repeliram e expulsaram os castelhanos, tão seus inimigos, ou mais do que os outros.

«Que es esto, portugueses, onde está vuestra fidelidad?» – perguntava, pasmada, a Duquesa de Mântua, vice-Rainha de Portugal, em 1 de Dezembro de 1640, aos Nobres que lhe tinham invadido o Palácio.

E os Nobres, muito serenos, pela boca de D. Carlos de Noronha, responderam-lhe que estivesse quietinha, para não terem de lhe faltar ao respeito.

«A mi? Como?!» – retorquiu, irada, a Duquesa. E, sereno, D. Carlos de Noronha, a tranquilizá-la, e em linguagem de hoje: «Como? Baldeando V. A. por uma dessas janelas fora...»

É das páginas mais bonitas da nossa história, essa que se escreveu em 1 de Dezembro de 1640, – com valentia, com elegância, com habilidade, com um desprezo soberano pela morte.

À frente de todos, e a destacar-se pela acção prudente e firme, a figura varonil, bem desenhada, bem personalizada, do Duque de Bragança que uma História ignóbil, apostada a desvirilizar Portugal, a envergonhar Portugal de si mesmo, a desacreditar Portugal, nos ensinou a ter como figurino de poltrões.

Que fez o Duque de Bragança?

Responda, por mim, um homem insuspeito – insuspeito porque despido de toda a espécie de ambições; insuspeito, porque superiormente culto; insuspeito, porque de feitio avesso a lisonjas, antes acusado de excessivamente azedo nos seus juízos – Joaquim de Vasconcelos, erudito notável:

«Restaurar o reino em todo o sentido, reorganizar a administração, restabelecer as finanças, criar os complicados elementos de defesa, reconquistar quase todas as possessões de África e todo o Brasil, criar a Junta Geral do Comércio, negociar alianças valiosas, tudo isto em dezasseis anos... parece-nos uma obra digna de admiração e do nosso respeito, ainda que não fossem conhecidas as circunstâncias dificílimas em que estes trabalhos foram executados».

É este o D. João IV que os factos, as realidades, autorizam e levam a criar, e não o que formam as calúnias e misérias que aquela História anti-portuguesa tem forjado a seu respeito.

Foi D. João IV vítima dessa História infame. E com ele, a nobre Dinastia de Bragança, que, a despeito do desventurado D. Afonso VI, personagem ainda insuficientemente definida e, portanto, deformadamente julgada, se mostrou digna continuadora da acção admirável das dinastias suas predecessoras.

A Restauração começou em 1 de Dezembro de 1640. Mas foi uma rude e longa campanha que durou vinte e sete anos – desde aquela data até 13 de Fevereiro de 1668, e ocupou três reinados, os de D. João IV, D. Afonso VI e os três primeiros tempos de D. Pedro II.

Portugal aureolou-se de glória militar, – pelas notáveis vitórias alcançadas nos campos de batalha; de glória cívica, – pela tenacidade que revelou, pelo espírito de sacrifício de que deu exemplo constante; e de glória diplomática – pela posição que conquistou nas chancelarias europeias.

Como em 1128, como em 1383, como em 1580 – o inimigo está na fronteira de leste. Use ele as máscaras que usar; seja ele o arauto de que ideologias quiser; revista ele a forma política que revestir, o vizinho de leste é sempre o inimigo.

D. Afonso I sujeitou-o à sua espada, obrigando-o a reconhecer o nosso direito e a respeitar-nos; D. João I e o Condestável obrigaram-no a beijar o pó de Aljubarrota e a fugir desvairado para além das fronteiras; os generais da Restauração – naqueles campos famosos das linhas de Elvas, do Canal, de Montes Claros, derrotaram-no em sucessivos combates. Inimigo vencido – mas não convencido.

Pode, às vezes, dar-nos a impressão de adormecido ou desinteressado, com as unhas encolhidas, quase inofensivo. Não nos iludamos! O inimigo está vencido, mas não está convencido. E a toda a hora, seja qual fôr a sua posição no quadro dos acontecimentos do mundo, – ele vive da saudade indominada de 1580 a 1640, e da esperança de recomeçar 1580.

Desgraçadamente, cá dentro, há quem lhe alimente essa saudade, e lhe fortaleça essa esperança, sob o disfarce traiçoeiro da Aliança Peninsular ou da Hispanidade.

Devemos aos Humanistas – espíritos internacionalizados, isto é, desnacionalizados, cidadãos do mundo e não das suas pátrias, devemos, aos Humanistas do século XVI, esse conceito perigoso e falso do Hispanismo. Até o nosso Camões se deixou seduzir pelo canto da sereia maldita.

Perdão! Portugal nunca foi Espanha; foi sempre Portugal!

Quando D. Afonso VII se proclamou Imperador, em Toledo, em Junho de 1135, passou a designar-se nos diplomas da sua Chancelaria, «totius Hispanie Imperator», ou «Imperator hispaniorum», ou «hispaniarum Imperator»; e este título que Afonso VIII transformou em «Ispanorum rex», mostra claramente que Portugal não fazia parte das Espanhas, nem da Espanha, e os portugueses não pertenciam à grei dos espanhóis.

De resto, o termo Hispania, tão simples, à primeira vista, é muito mais complicado do que se supõe. Em muitos documentos dessa época, denomina-se Hispania tudo o que na Península está ainda em poder dos mouros. São vulgares as expressões de Hispania ou venire de Hispania ou ire de Hispania, como referindo-se a terras da Península ainda não conquistadas por cristãos. E Petter Rassow que isto nos revela, acrescenta que «Valencia, Murcia, Cordoba, y Malaga son las partes o terras de Hispania».

Seja como fôr, o que é indiscutível é que Portugal era Portugal, e nunca, ninguém, na Idade Média, concebeu a Espanha como abrangendo também Portugal, nem os Reis desse tempo, dizendo-se «de Hespanha», se supunham de Portugal.

Foi preciso que viessem os Humanistas do século XVI, com as suas invencionices, para que se criasse um conceito colectivo de Hispanidade, que prendesse no mesmo elo, ou fundisse no mesmo sangue, a Espanha e Portugal, como se entre uma e outro não houvesse um abismo que ninguém pode transpôr.

Esse conceito colectivo despertou ultimamente, na pena de António Sardinha, e na acção proselítica do desventurado Ramiro de Maeztu, assassinado canibalescamente pelas hordas vermelhas de Madrid, mas é preciso fazer-lhe frente, e negar-lhe passaporte de trânsito em terras de Portugal.

Compreendo que ele seduza o inimigo tradicional de Portugal; espíritos portugueses não pode seduzi-los, uma vez que não estejam doentes.

Não! A leste o inimigo – contra quem devemos ter sempre preparadas as nossas forças, as nossas energias, as nossas vontades, e as nossas vidas. Isto não significa que lhe queremos mal: quer dizer, sim, que nos queremos bem a nós próprios...

E o que acabo de dizer não se opõe a que possamos observar certos momentos de entendimento ou colaboração, como durante a última guerra de Espanha, ou como na hora que passa. Esses momentos são filhos de tendências pessoais deste ou daquele governante: não reflectem sentimentos colectivos. Tivemos desses momentos, depois de 1128 – o que não impediu 1385; voltamos a tê-los posteriormente, e nem por isso escapamos a 1580. É que acima das atitudes pessoais deste ou daquele homem de Estado – estão as condições psicológicas e as tradições históricas dos Povos, que nos impõem a verificação permanente das realidades, e nos defendem dos perigos das ilusões ocasionais.


Alfredo Pimenta in «A Fundação e a Restauração de Portugal», 1940.


Fonte: Veritatis

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