terça-feira, 8 de agosto de 2017

Compreender Dom Sebastião e Alcácer-Quibir

Foto de Nova Portugalidade.



De todos os chefes portugueses, nenhum terá sido mais vilipendiado, mais brutalizado pela História ou mais incompreendido que Dom Sebastião. "Desejado" pela massa da população, o último monarca da casa de Avis não foi menos acusado; denigre-se-lhe o julgamento, ataca-se-lhe a idade, ridiculariza-se-lhe como "obsessiva" a vontade de ir colher prestígio marcial a Marrocos. O rei, arrasado na honra por lenda negra de criação recente, confunde-se para a maioria com o "atrasado mental" e o "pedaço de asno" que lhe desenha António Sérgio: jovem, estúpido, débil físico e mental, o arrogante monarca teria embarcado em delirante cruzada africana para nela perder a liberdade nacional; o holocausto da pátria nas mãos daquele rei-menino ofereceriam, continua o mito, prova segura dos perigos da monarquia e da concentração de poder. Trata-se, pois bem, de imbecil mentira política sem coisa que a prove ou evidência que a sugira: o rei não foi criança irracional, mas estratego avisado e sagaz, atento ao mundo e ferreamente consciente do interesse prático, geopoliticamente ditado e interpretado, da nação portuguesa. A cruzada africana foi lógica, fazia sentido, respondeu e correspondeu a uma urgência nacional. É, também, sabido que falhou clamorosamente - o facto em nada fere o argumento geral de que a operação era estrategicamente necessária, por muito que tenha sido tacticamente mal conduzida e acabado, como sabemos, por redundar em rotundo fracasso.

Integremo-nos no contexto português da época. Após longa regência, conduzida a tempos por Dona Catarina de Áustria, avó de Dom Sebastião, e a outros pelo seu tio-avô, o Cardeal Dom Henrique, achava-se maculado o nome de Portugal. Crescera a influência espanhola, de que Dona Catarina era agente fiel; em Marrocos, enfraquecera-se perigosamente a posição portuguesa com a política de retirada estratégica promovida por Dom João III. A Espanha, monarquia aliada com que Portugal partilhava a península, as rotas marítimas e os interesses comerciais, entrara em acelerado declínio no primeiro ano de governo de Dom Sebastião, 1568, devido à revolta das suas província holandesas. À medida que foram crescendo as aflições da coroa castelhana, mais onerosa se foi fazendo a nossa aliança com ela; maiores, mais pesadas e mais problemáticas de satisfazer foram, também, ficando as exigências de Filipe II. Em nome da unidade católica, pediu o Escorial a Dom Sebastião que encerrasse os portos portugueses aos protestantes da Holanda. Requereu-se ainda de Portugal que controlasse o tráfico de ouro da América espanhola - calcula-se que acabava cá um terço do metal precioso lá extraído - para Lisboa. Eram pedidos que Portugal não podia, sem perigar interesses seus, acolher. Como surgia claro aos decisores portugueses, o envolvimento crescente de Castela nos negócios lusos denunciava inquietação que o poderio espanhol já não tinha como aquietar ou esconder; o jovem Sebastião viu na agressividade do gigante acossado manifestação clara do desequilíbrio que se gerara entre Portugal e Espanha. A segunda, mais forte que o primeiro, mas ferida e em grave crise, procurava impor-se-lhe de modo intolerável. Toda a política diplomática de Dom Sebastião partiu desse diagnóstico: por um lado, de que a aliança luso-espanhola era do nosso interesse e vantajosa para o mundo católico; por outro, de que a desproporção de forças entre a Espanha hegemónica e Portugal nos era danosa e abria espaço a excessos que Lisboa não poderia tolerar de Madrid.

O diagnóstico de Dom Sebastião era, quanto a nós, certeiro. Em causa não está, da parte do autor destas linhas ou do Rei Desejado, qualquer má-vontade ante a Espanha. Na sua formação psicológica e natural desejo de fazer, ultrapassar, marcar a História, Dom Sebastião terá tido na pessoa do Rei-Imperador Carlos I & V, seu avô espanhol, objecto primeiro de inspiração. O seu apego à aliança espanhola era sentimental e racional. O autor segue Dom Sebastião na compreensão e defesa dessa política de amizade, e estima-a ponto essencial da política externa portuguesa de todas as eras - incluindo, naturalmente, a actual. Dom Sebastião não se distanciava da avó Dona Catarina na proposição dessa política, que de tão clara vantagem era para Portugal que em nenhum sector causava apreensão. Em causa estava, sim, a recalibração da relação, que só poderia voltar a ser plenamente útil a Portugal - salvaguardando-lhe a colaboração espanhola sem comprometer a liberdade de acção de Lisboa - se fosse reequilibrada: isto é, se pudesse Portugal ganhar frente a Madrid músculo que não demonstrara em décadas anteriores.

Portugal propôs-se reestabelecer o equilíbrio ibérico, que se perdera para dar lugar a situação que o Professor Borges de Macedo classifica de "cerco", através de dois tipos de medidas. Umas, diplomáticas, procuraram compensar a ligação a Espanha - que a avó de Dom Sebastião, Dona Catarina, queria fortalecer pelo casamento entre o neto e uma filha de Filipe II - com o matrimónio do Rei com uma princesa austríaca ou francesa. A primeira tentativa, que faria de Ana de Áustria rainha de Portugal, gorou-se ao substituir-se a Sebastião na união o seu tio Filipe de Espanha. O episódio, como parecerá natural, desagradou grandemente à corte de Lisboa, e fez por envenenar mais ainda as relações entre os dois poderosos impérios ibéricos. Seguiu-se nas preferências de Lisboa uma princesa francesa, Margarida de Valois. O interesse português em Margarida, irmã de Carlos IX de França, consubstanciava uma inovadora tentativa de aliança com a França, agora tida como alternativa à aliança com a Inglaterra protestante. Embora tenha vindo a falhar, o projecto oferece, se entendido na lógica diplomática a que evidentemente obedeceu, prova de um programa político claro e bem pensado. Nenhum destes passos, todos profundamente lógicos e submetidos a um só objectivo - a busca de aliados fora da península - corrobora a imagem tradicional de um monarca irracional, confuso ou politicamente incapaz.

O segundo leque de medidas implementadas por Dom Sebastião foi de carácter militar e concentrou-se, como sabemos, em Marrocos. Tratá-lo-emos a fundo na segunda parte deste estudo.

RPB

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