terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Eutanásia: uma falsa compaixão

Todos sabemos que a vida não nos pertence por completo: foi-nos dada pelos nossos pais como um dom, pelo que não temos domínio absoluto sobre ela. E este ponto reforça os argumentos contra a eutanásia


Falar de Eutanásia, na minha opinião, só será possível se destacarmos a dignidade do ser humano. Por isso, ser de direita ou esquerda, religioso ou agnóstico, não me parece que seja o ponto de partida mais relevante, nesta discussão sobre a legalização da Eutanásia.
Ao longo dos tempos, a palavra teve vários significados e por vezes diferentes. Etimologicamente, Eutanásia (do grego “eu”, bem, “thánatos”, morte) não significa outra coisa que uma “boa morte” ou “bem morrer”. Hoje, a Eutanásia ganhou o sentido de homicídio a pedido e por compaixão, isto é, o de causar, de forma activa, a morte de outra pessoa, por piedade perante o seu sofrimento e atendendo ao seu desejo de morrer. Por isso, segundo a interpretação que se vai dar ao termo Eutanásia, a sua prática tanto pode significar um crime desumano, como um aparente acto de misericórdia solidária. Também é verdade que todos aqueles que aceitam que deverá existir legislação sobre a Eutanásia como algo mais inócuo do que aquilo que realmente é, se posicionam do lado desta última interpretação, afirmando que se trata de uma “morte doce “ou “morte digna” e, com isso, procuram a sua aceitação social (e, de certa forma, uma validação moral).
Independentemente das interpretações, a sua prática implica provocar directamente a morte, através de procedimentos baseados na medicina (não são procedimentos ou actos médicos, pois estes têm como pressuposto cuidar da saúde e da vida!) a doentes terminais para evitar o seu sofrimento e aliviar a carga que incumbe aos familiares mais próximos.
Existe uma tendência para escrever nos meios de comunicação social sobre as vantagens de aceitar a moralidade da Eutanásia, num esforço de conquistar mais público para a sua legalização. Também existem alguns parlamentos nacionais, em poucos países, onde os deputados tentam também eles conseguir aprovar a legalização desta prática. Convirá aqui lembrar que no parlamento do Reino Unido este debate já se fez por duas vezes e a lei pró-eutanásia foi chumbada.
Mas aplicar a morte por Eutanásia não é da competência do médico. Assistir ao suicídio não é consistente com o compromisso que o médico fez de tratar da doença conforme o código tradicional da ética médica constante do juramento de Hipócrates e que se mantém actual. Se aceitássemos isto, haveria uma desconfiança das pessoas em relação aos médicos e, por isso, os médicos e os enfermeiros não podem ser coagidos na sua ética, e não devem ser pressionados para actuar contra os seus verdadeiros valores profissionais. Os médicos existem para aliviar o sofrimento e não para matar! Se atribuirmos aos médicos o poder de praticar a Eutanásia, eles deixarão de ser uma referência confiável e muitas dúvidas surgirão sobre o verdadeiro âmbito da relação médico-doente.
A vida humana tem um valor intrínseco em si mesma. A boa saúde não pode dotar de dignidade a vida humana, pois a saúde não tem valor em si mesma, mas antes participa da vida. Obviamente que a saúde é algo de que se deve tratar e cuidar, mas não é um bem absoluto ao qual tudo se deva subordinar. A saúde é para o ser humano, e não o ser humano para a saúde. A dignidade da pessoa que não desaparece com a doença, nem a eutanásia confere dignidade, por si só, à morte. Todos os doentes nos ensinam, nomeadamente os doentes crónicos, que a saúde não é um valor absoluto.
Uma parte do problema neste debate sobre a Eutanásia está em que não se dá nenhum valor ao sofrimento, porque muitas das vezes este sofrimento, se devidamente apoiado, é uma ocasião para que a pessoa aprofunde a sua própria existência, se reconcilie e encontre um sentido transcendente para a sua vida. Quem, infelizmente, teve de passar por isso, dá testemunho desta verdade. Dizer isto não significa de forma alguma que se ache aceitável nos dias de hoje um sofrimento que se torna destrutivo ou insuportável, quando existem meios clínicos disponíveis para intervir activamente nesse sofrimento, nomeadamente em fim de vida, com os cuidados paliativos.
Porém, vivemos um tempo em que tudo se relativiza, e a dor e o sofrimento são descartáveis, algo de que é melhor não falar e que não é conveniente. O ser humano hoje tem muita pouca tolerância perante a dor, teme o seu sofrimento. Esse temor, legítimo, deve-se principalmente a uma preocupação excessiva com o corpo, esquecendo-se que as mulheres e os homens são também seres espirituais e podem transformar e encontrar sentido nas contrariedades da vida. E por isso este processo contemporâneo de não-aceitação do sofrimento, enquanto experiencia de quem está vivo e faz escolhas, está a resultar em que a sociedade venha também a procurar a Eutanásia.
Todos nós sabemos que a vida não nos pertence por completo. A vida foi-nos dada pelos nossos pais como um dom, e por isso não temos domínio absoluto sobre ela. E este argumento reforça todos os argumentos críticos contra a Eutanásia, pois a qualidade de vida, sendo uma dimensão importante da mesma mas não a única, não pode ter maior valor que a própria vida. A autonomia do doente não deverá ser condicionada pela própria vida, isto é, não poderá ser um absoluto no que se refere à sua própria vida. Por isso, a verdadeira compaixão não consiste em ajudar a eliminar a pessoa que sofre, mas sim em acompanhar e ajudar a intervir activamente no seu sofrimento, reduzindo-o para níveis toleráveis.
O que nunca deve faltar é o tratamento paliativo para diminuir o sofrimento. O doente incurável tem a mesmíssima dignidade de qualquer ser humano não doente e por isso causar-lhe a morte é um crime, mesmo que isso se faça por alegada compaixão.
Não é um suicídio assistido que ajuda as pessoas a morrer dignamente. A verdadeira morte digna acontece no ocaso de uma vida digna e é proporcionada sem dúvida nenhuma por quem se aproxima do doente terminal disposto a acompanhá-lo, e com solidariedade, ciência rigorosa e verdadeira compaixão se entrega ao seu cuidado.
E aquilo que vemos são alguns que se posicionam como supostos defensores dos direitos humanos a propor a legalização da Eutanásia, em sentido totalmente inverso ao principal direito de todos os Homens: o direito à protecção da vida. Esperemos que os legisladores actuem com sensatez, sabendo que o homem de hoje tem muitas dificuldades em enfrentar a dor, o sofrimento e a morte, mas aceitando sempre defender a vida que é em todas as situações humana, valiosa e digna.


Fonte: Observador

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