domingo, 11 de fevereiro de 2018

Homilia do Revd. Padre Gonçalo Portocarrero de Almada na Igreja de São Vicente de Fora, 1 de Fevereiro de 2018

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I
Introdução

Os Apóstolos partiram e pregaram o arrependimento, expulsaram muitos demónios, ungiram com óleo muitos doentes e curaram-nos” (Mc 7-13). Este feliz epílogo ao trecho do Evangelho, agora proclamado, enche-nos de esperança, mas também de responsabilidade. De esperança porque, doentes como todos somos, senão no corpo pelo menos na alma, a certeza de que também agora o Senhor, através da sua Igreja, nos pode e quer curar, enche-nos de alegria. De responsabilidade porque, se aqui nos encontramos, é porque fazemos parte do grupo dos apóstolos de Nosso Senhor Jesus Cristo, o que quer dizer que também a nós incumbe a missão de partir e pregar o Evangelho, com a palavra e sobretudo com o exemplo, expulsando os demónios e curando os muitos doentes que nos esperam.

II
Cumprimentos

Mais uma vez, um grupo numeroso de patriotas se encontra neste templo, para sufragar Sua Majestade Fidelíssima el-Rei D. Carlos I e Sua Alteza o Príncipe Real, Dom Luís Filipe que, num dia como o de hoje, há cento e dez anos, foram barbaramente assassinados no Terreiro do Paço.
Se é verdade que a augusta presença de Suas Altezas Reais, os Duques de Bragança, confere a este acto um carácter político, de afirmação da Instituição Real, que me apraz registar, também a título pessoal, é igualmente certo que o alcance desta efeméride vai para além da sua expressão monárquica, na medida em que reveste um carácter patriótico e espiritual. O regicídio não apenas enlutou a Família Real, como ofendeu toda a nação portuguesa que, na pessoa de el-Rei tinha o mais excelso símbolo da sua grandeza e, no Príncipe Real, a garantia da continuidade da dinastia reinante. Ao ser ungido, o monarca exerce uma espécie de sacerdócio que o configura com a pátria, de que é expressão viva, por virtude daquele poder que, por vir do alto, é sagrado. Não estranha, portanto, que o acto criminoso perpetrado contra o soberano seja, para a moral católica, comparável ao sacrilégio: para além do desrespeito pelo dom da vida humana, é também uma particularmente grave ofensa a toda a nação e a Deus, de quem procede todo o poder.
Esta liturgia pretende sufragar as almas das vítimas reais do regicídio, mas incluem-se também nesta prece aqueles que lhes eram mais próximos: em primeiro lugar, Sua Majestade a Rainha D. Amélia, que nesse trágico lance perdeu o seu augusto marido, o Senhor D. Carlos I, e o seu filho primogénito, o Príncipe Real. Também é especialmente evocado el-Rei D. Manuel II que, por virtude desse penoso acontecimento, foi tragicamente chamado para a missão de dar continuidade à Casa de Bragança, no trono de Portugal.
Embora extinto, na varonia, esse ramo da dinastia, prossegue agora nos Senhores Duques de Bragança a chefia da Casa Real portuguesa: sobre eles recai também a glória da representação de todos os Reis de Portugal e a responsabilidade de dar seguimento ao ideal monárquico, na fidelidade aos princípios cristãos que forjaram, desde a sua fundação, a nacionalidade portuguesa. Para esse efeito, não lhes faltarão as copiosas bênçãos da Providência, mas decerto agradecerão o apoio da nossa oração, para que continuem a honrar, como até hoje sempre fizeram, a tradição histórica que tão exemplarmente encarnam, na sua louvável fidelidade à missão espiritual que compete a Portugal. 
Cumprimento também o Senhor Presidente da Real Associação de Lisboa, a quem devo a honra de presidir a esta Eucaristia, a direcção da Causa Real, os membros das Ordens pontifícias de São João de Jerusalém, dita de Malta, e do Santo Sepulcro, meus estimados Confrades, e os Cavaleiros e Damas das Ordens dinásticas de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e de Santa Isabel. Saúdo igualmente todos os outros fiéis presentes, recomendando-me às suas orações.


III
A monarquia e a tradição

Ao aproximar-se o dia da sua morte, David ordenou a seu filho Salomão: ‘Vou seguir o caminho de todos os mortais. Tem coragem e procede como um homem. Guarda os mandamentos do Senhor, teu Deus” (1Reis 2, 1-4).
Quando chegou ao termo natural da sua vida terrena, o Rei David, que sucedera ao Rei Saúl, determinou que o seu filho Salomão lhe sucedesse no trono de Israel e assim assegurasse a continuidade da dinastia davídica.
A sucessão familiar na chefia de Estado é uma característica própria das monarquias, que é de grande conveniência para a paz e unidade nacional. De certo modo, no regime monárquico, nenhum rei o é a título meramente individual mas familiar, na medida em que o é por herança de seus maiores. De certo modo, poder-se-ia até dizer que é a família que reina, cabendo a cada monarca apenas o exercício da realeza no período intermédio do seu reinado, depois da geração que o antecedeu e antes do monarca que lhe sucederá. Esta continuidade familiar no exercício do poder real sublinha a sua função ministerial e histórica: o soberano serve a pátria e a unidade nacional, devotando a sua vida inteira à sua chefia e representação, mas sempre de acordo com a tradição, ou seja, respeitando uma cadeia de gerações que o antecederam e que, depois dele, lhe deverão suceder.

Segundo a etimologia, tradição é entrega: a traditio romana era a entrega que se fazia de alguma coisa que, por regra, simbolizava o bem transaccionado. O monarca recebe de seus antecessores um legado histórico, que deve conservar e depois transmitir às gerações vindouras. O conceito de tradição está unido ao de unidade e de identidade nacional e opõe-se, por assim dizer, ao de revolução, que pressupõe sempre uma ruptura com o passado, quase uma refundação nacional. Neste sentido, a monarquia afigura-se como a forma de Estado que é mais respeitadora da tradição histórica e da identidade nacional, sobretudo quando a dinastia, como é o caso de Portugal, é a mesma desde a fundação da nacionalidade.
IV 
Nacionalidade portuguesa e espiritualidade cristã

 Mas não basta que haja uma continuidade histórica, é necessário que se preserve a identidade espiritual que nos define como nação.
 Algo semelhante acontecia com o reino de Israel, que não era apenas mais um Estado da Ásia Menor, mas o povo escolhido, o povo de Deus. Por isso, o Rei David, de quem descenderá o esperado Messias, encarece ao seu filho Salomão, seu sucessor no trono, a fidelidade a todos os preceitos divinos: “Guarda os mandamentos do Senhor, teu Deus. Segue os seus caminhos, cumprindo os seus preceitos, estatutos, normas e decretos, conforme está escrito na lei de Moisés. Assim serás bem sucedido em todas as tuas obras e empreendimentos e o Senhor cumprirá a promessa que me fez: ‘Se os teus filhos procederem bem e caminharem fielmente na minha presença, com todo o coração e toda a alma, nunca te faltará um descendente no trono do Israel’ ” (1Reis 2, 1-4. 10-12).
Talvez, do ponto de vista teórico, seja possível conceber monarquias sem qualquer conotação espiritual, mas esse nunca poderá ser, decididamente, o caso de Portugal, ao qual a Santa Sé, por causa da indefectível união dos nossos monarcas à sede petrina, em boa hora lhes concedeu o tratamento de Majestades Fidelíssimas. Se porventura a nossa monarquia deixasse de ser cristã, também deixaria de ser, de algum modo, tradicional e genuinamente portuguesa. Com efeito, a nossa nacionalidade sempre esteve unida à espiritualidade cristã, desde D. Afonso Henriques e até ao último dos seus sucessores no trono lusitano. Se a monarquia lusitana deixasse de ser cristã, deixava também de ser tradicional e portuguesa.
O declínio da civilização europeia deve-se, em boa parte, ao inverno demográfico, mas também à passividade ideológica em relação a outras culturas e religiões. Neste contexto europeu, em que o nosso país também está integrado, não será excessivo sublinhar a necessidade, senão mesmo a urgência, de afirmar a identidade cristã de Portugal. Se o islamismo pôde avançar em tantos países da velha Europa, não foi apenas porque muitos fiéis muçulmanos emigraram para o velho continente e aí se estabeleceram, trazendo consigo a sua cultura e a sua fé. Uma tal involução cultural e religiosa só pôde acontecer porque os novos ‘colonizadores’ ocuparam um espaço que a tibieza de muitos europeus deixara vazio.
A crise da Europa não é apenas económica, demográfica ou cultural, mas sobretudo espiritual: se o Cristianismo estivesse vivo e vibrante nos países que receberam o primitivo anúncio do Evangelho, não seriam os refugiados islâmicos a impor a sua crença, convertendo em mesquitas as velhas igrejas, mas os cristãos que, aproveitando este movimento migratório, proporiam aos fiéis de Alá, com a palavra e sobretudo o exemplo e respeitando sempre a liberdade das suas consciências, a fé redentora em Jesus Cristo Nosso Senhor.

V
Conclusão

No ano findo, foi com alegria que agradecemos a Deus o primeiro centenário das aparições marianas em Fátima, bem como a canonização, pelo Papa Francisco, na Cova da Iria, dos videntes Francisco e Jacinta Marto.
Neste ano de 2018, ocorre um outro centenário, que é feliz por ser o do fim da primeira Guerra Mundial, mas que é trágico também, por ser o do termo de quatro grandes impérios envolvidos nessa contenda: o otomano, o austro-húngaro, o alemão e o russo. A essa catástrofe europeia está associada a queda das respectivas monarquias, bem como o martírio da família imperial russa, impiedosamente assassinada pelos defensores da soviética ditadura do proletariado.
Para além destas trágicas memórias, ressalve-se uma lembrança gloriosa: a do Beato Carlos, último imperador austríaco que, por uma muito feliz circunstância, veio a nascer para a vida eterna na ilha da Madeira, onde os seus restos mortais se veneram na Igreja de Nossa Senhora do Monte. Sua viúva, a Imperatriz Zita, cujo processo de beatificação também está em curso, era neta de el-Rei D. Miguel I, pelo que também por esta via se reforça a relação do Beato Carlos com Portugal.

Sem querer reeditar a utopia do quinto império, tão cara ao nosso Padre António Vieira, imperador da língua portuguesa, na feliz expressão do vate, permitam-me que faça do sonho de uma nova era cristã a prece final desta homilia. Talvez Fátima, a localidade portuguesa curiosamente homónima da filha do profeta islâmico, encerre ainda uma surpresa: a da conversão a Cristo dos seguidores de Maomé! Quem sabe se, no cumprimento desse desígnio, esta terra de Santa Maria, em que a Senhora mais brilhante do que o Sol prometeu que nunca se perderia o dogma da fé, não tem ainda uma missão profética a cumprir!
Por graça e devoção de el-Rei D. João IV, Nossa Senhora da Conceição é, desde 1646, nossa Padroeira e Rainha. Que seja de novo Portugal, sob a égide da Casa de Bragança, o instrumento da Providência para a realização do prometido triunfo do Imaculado Coração de Maria!  
Assim seja!

Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada


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