terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Despotismo e Absolutismo


Deve notar-se, que quando estes autores escreveram sobre a natureza dos governos despóticos, tomaram sempre o dos Turcos para exemplo: e como a autoridade dos Sultões se exercitou quase sempre com muita crueldade e violência para com os povos que governavam, concluirão logo, que a ideia de governo despótico incluía necessariamente em si as ideias de barbaridade, de injustiça e de crueza. Não era sem fim particular esta maneira de discorrer. Tratava-se de tornar odiosos todos os governos monárquicos absolutos, entre os quais e os despóticos não estabeleciam diferença essencial; e por este motivo escolheram para base dos seus raciocínios o governo dos Turcos com preferência a uma imensidade de governos da Ásia e da Europa, e ainda da África e da América, que, posto que absolutos e até mesmo despóticos, se não acomodavam tão facilmente ao seu modo de discorrer.

Por que motivo, sendo o governo de Roma no tempo dos Reis, e ainda mesmo no tempo dos cônsules até o estabelecimento dos decênviros, o dos Egípcios, o de Macedónia, e mil outros por ventura tão despóticos como o dos Turcos, não é nenhum deles citado para exemplo por estes escritores apaixonados? Porque de nenhum deles se podia tirar tão facilmente, como do dos Turcos, a consequência de que todo o governo despótico, e, por associação de ideias, todo o governo absoluto, há-de ser necessariamente cruel, injusto e violento.

Seja como for, é certo que do modo por que autores pouco sinceros reuniram nos seus escritos as duas ideias de despotismo e crueldade, de governo despótico e injustiça, se seguiu tomar a palavra Absolutismo sentido tão odioso, que aos revolucionários de todas as cores está servindo de ensalmo para fazerem adoptar e progredir os planos de revolução, em que vão pondo em prática os mais inauditos atentados contra os governos estabelecidos.

A significação primitiva da palavra Grega Déspotes nunca teve nada de odioso; porque os termos que em latim lhe correspondem são – RexImperator. Não há coisa mais ordinária do que encontrar em todos os livros sagrados escritos em Grego, passagens em que se dá a Deus o nome de déspota, acompanhado de todas as expressões de gratidão e amor que podem sair de um coração reconhecido. Do mesmo modo a palavra despotismo, que se deriva de déspota, nada tinha de odioso na sua significação natural: indicava aquela espécie de governo em que todas as leis e regras de governar eram unicamente estabelecidas pelo soberano, sem dependência de outra autoridade qualquer; e deste modo tanto competia o nome de despótico ao governo de Deus, que, sendo o melhor de todos os governos possíveis, é o mais completamente independente que pode imaginar-se, como a todos os governos absolutos da Europa, em que os soberanos faziam e revogavam as leis, conforme entendiam que era conveniente às necessidades do povo que governavam. Estas leis que eles mesmos faziam, eram as únicas condições que limitavam o seu poder: mas, se o soberano era senhor das leis, dizia El-Rei D. João II, logo se fazia servo delas, pois lhe primeiro obedecia; sempre independente como o Deus que representava, mas sempre, como Ele, escravo das suas promessas.

E nesta completa independência de todas as autoridades do mundo consiste o motivo secreto por que o rei absoluto está muito mais habilitado para fazer a felicidade do povo do que aquele que o não é. O soberano que é rei pela graça de Deus, como nunca pode ter medo de que lhe tirem a coroa, também nunca pode ter motivo suficiente para resistir aos impulsos benéficos do seu coração, ou para fazer-se surdo ao grito da consciência. Certo da sua sorte futura, será naturalmente generoso e bem-facejo, porque nunca pode ter medo de vir a cair em miséria: independente de favores alheios, fará sempre justiça direita, porque nunca pode ter precisão de comprar benevolências de outrem.

Não é assim o que é rei pela graça do povo. A incerteza da sorte que o espera é a espada de Dâmocles que lhe está sempre pendente sobre a cabeça. Quem sabe se o povo soberano retirará um dia ao seu Real mandatário a comissão que primeiramente lhe dera de governá-lo? Em tais circunstâncias é força que o príncipe aguarente, até se fazer miserável, todas as suas despesas; que se faça mesquinho, e até mesmo avaro; que mande para fora os capitães da nação, a fim de segurar para si e para a sua família um fundo de que em todo o caso possa dispor. Se se trata de fazer justiça, quantas vezes lhe não será preciso torcê-la para captar o favor de alguma personagem influente que pode ser-lhe hostil, quer seja no parlamento, quer seja em assembleias populares!

Como o soberano é o primeiro interessado na prosperidade do reino que lhe pertence, deve supor-se que todas as suas leis são dirigidas a fazer a felicidade dos vassalos que governa; porque é absurdo pensar que aquele cuja glória, prosperidade e interesse nasce, prospera e cresce com o interesse, prosperidade e glória da nação a que preside, trabalhe por arruinar-se a si mesmo, arruinando os interesses do povo de que é rei. Pode não acontecer a mesma coisa, quando alguma outra autoridade, sem ser a do soberano, tem parte na formação das leis; porque em se tratando de súbditos, não são raros aqueles que procuram fazer a sua fortuna à custa da nação, cujos interesses administram.

(...)

Parece pois que o governo despótico em si, e por muito mais forte razão o absoluto, nada tem donde devam derivar-se todas as barbaridades e injustiças que os declamadores de todas as épocas lhe atribuem; e que se o contrário se verifica em alguns países da Ásia, como na Turquia e no Japão, é porque há nesses países alguma outra causa oculta, independente da natureza do governo, a que deva ser atribuído este fenómeno. Esta causa oculta, de que falo, parece-me que deve procurar-se na natureza da religião de qualquer das duas nações.

José da Gama e Castro in «O Novo Príncipe», 1841


Fonte: Veritatis

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