domingo, 18 de setembro de 2022

O Problema do SNS

 


Bastante se fala dos problemas do SNS na praça pública, ao mesmo tempo que no Parlamento se tecem sucessivos louvores à entidade que se foi tornando um símbolo para o regime. O público em geral apercebe-se da contradição, sem entender as causas, o que gera um estado de dissociação cognitiva, tão oscilante quão perene.

O SNS foi criado por via Constitucional, com aprovação pela Assembleia Constituinte em 2 de abril de 1976, durante o mandato do VIº (último) Governo Provisório.

No seu Artigo 64, a Constituição (CRP) determinava “o direito à protecção da saúde” que seria concretizada “pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito”.

O SNS seria ulteriormente implementado através da Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro, aprovada pela Assembleia da República durante o Vº Governo Constitucional.

Esta opção estratégica, essencialmente ideológica, aparentemente consensual, teria implicações profundas na perceção dos cidadãos relativamente ao SNS, sobrepondo-se o principio da gratuitidade. A extensão lógica seria a extinção tendencial da medicina privada, uma vez que o novo sistema de saúde seria universal e de grande qualidade, segundo as declarações politicas particularmente entusiastas na altura, remetendo a medicina privada para um papel residual.

Contudo foram diversas as vozes que alertaram para os perigos desta estratégia: o facto de o serviço prestado pelos médicos ser gratuito, implica na prática comercial-financeira que não tem valor, o seu valor inevitavelmente irá tender para 0. Uma prática que não gera mais-valias no Mundo de hoje, real, é desprovida de valor.

Contra o principio da universalidade foram criados sistemas de saúde diferentes, um conhecido como a “Caixa” da Segurança Social, para o público em geral, outro a ADSE, dedicada aos servidores do Estado.

Na Lei reguladora n.º 56/79, Art. 7º, já constava uma outra contradição fundamental, apenas uma das diversas expressões da baixa qualidade legislativa, que inquinaria todo o processo: “o acesso ao SNS é gratuito, sem prejuízo do estabelecimento de taxas moderadoras diversificadas tendentes a racionalizar a utilização das prestações”.

Em 1974 a medicina privada assentava em pequenos consultórios, que iriam subsistir em paralelo ao SNS, muitas vezes resultando num complemento útil, para descongestionar os serviços hospitalares e os Centros de Saúde que iam sendo integrados no novo sistema. Desde o inicio que a universalidade do SNS se demonstrava uma quimera, confrontando uma estratégia de base fundamentalmente ideológica com o principio da realidade.

O texto Constitucional sofreria uma primeira modificação, apenas ideológica – irrelevante na prática – em 1982.

Em 1989 foi aprovada a segunda revisão constitucional (Lei Const. n.º 1/89, de 8 de Julho) em que o texto do Art. 64º sofreria uma alteração substancial, previsivelmente no sentido de maior deterioração da qualidade legislativa: passou de “gratuito” para “tendencialmente gratuito”. Tendencial, que soa como tendencioso, permite as mais diversas interpretações, embora no contexto significasse o oposto do literalmente expresso: que o SNS pudesse passar a ser tendencialmente pago.

Nos anos seguintes Aníbal Cavaco Silva, Primeiro Ministro e a sua ministra Leonor Beleza, iriam dar a primeira grande machadada estrutural, no jovem mas já frágil SNS, divulgando a ideia de que os problemas graves de insuficiência operacional se deviam aos médicos, que não trabalhavam o suficiente nos hospitais, privilegiando as suas clínicas privadas. A solução lógica, apoiada numa sucessão de análises e “livros brancos” sobre a saúde, seria a exclusividade. Pretendia-se impor a exclusividade no exercício de funções publicas a partir dos médicos mais jovens, sem vinculo contratual, deixando livres para o exercício privado os quadros hospitalares diferenciados. Não só voltaram a população contra os médicos, como criaram uma clivagem geracional entre os médicos, ainda com repercussões no presente: utentes-contra-médicos, médicos-contra-médicos.

Nos anos 70 a 90 a Medicina sofreria uma evolução dramática em termos tecnológicos, nos dispositivos médicos implantáveis e também nos equipamentos pesados de electromedicina, nas áreas de diagnóstico e terapêutica. Esta evolução representava uma possibilidade de aumento de eficácia global dos cuidados médicos, mas também aumento dos custos, com um impacto orçamental considerável, muitas vezes utilizado como arma de arremesso pelos partidos na sua luta, essencialmente não-ética, pela influência e poder.

Paralelamente, apesar da opção ideológica Constitucional de base, no Mundo real a medicina privada iria crescer de forma considerável, incluindo uma inversão do paradigma dos anos 70: os pequenos consultórios foram sendo absorvidos por grandes grupos económicos, infelizmente maioritariamente de capital estrangeiro, que finamente erigiram grandes estruturas hospitalares. Afinal o ato médico tinha um determinado valor.

Há muito que já não se vive na dualidade de um SNS tendencialmente universal versus o pequeno consultório, ou pequena sociedade médica; o que temos hoje é um “pequeno” SNS, economicamente não viável, em dialéctica com os grandes grupos económicos, incluindo as empresas de Eletromedicina e a Grande Farmácia, transnacionais.

No SNS o capital humano, no fundo o mais valioso, foi-se transferindo de um submundo ideológico de descapitalização, do ato sem valor, para as entidades onde esse ato tem valor comercial, ou seja onde tem valor de mercado. Até porque onde reside o capital há mais lugar para o investimento e actualização tecnológica, hoje essencial para uma prática médica diferenciada.

No SNS os médicos directores de serviço foram gradualmente desautorizados, sem poder real, muitas vezes sem conseguir coordenar de forma eficaz equipas operacionais. Por outro lado não se permite com facilidade a criação de unidades autónomas, na realização de tarefas ultra-especializadas, quando necessário. Faltam instalações e equipamentos. Outros sectores de recursos Humanos, também essenciais para a produção, passaram a reivindicar cada vez mais serem considerados como “profissionais de saúde”, conceito sem definição, na dependência de chefias independentes. A estrutura burocrática engordou, com comissões intermédias, por vezes meramente administrativas, que interferem na gestão dos serviços hospitalares, ou seja na produção de serviços de saúde.

A solução em Portugal para os baixos salários foi a promoção dos trabalhadores via títulos académicos, por vezes desadequados, muitas vezes meramente nobiliários. Devido à rigidez das normas estruturais hospitalares, o resultado é a diluição da hierarquia formalmente reconhecida e o caos potencial na gestão dos serviços.

Na 4ª revisão constitucional o texto do artigo 64.º foi de novo alterado, com reforço da poluição legislativa. A “cobertura médica e hospitalar” passou a ser feita por “recursos humanos e unidades de saúde”, ou seja aumentou o grau de ambiguidade.

A gestão financeira no SNS é uma quimera. Sem um sistema de facturação por doente, independente do pagador final, não há possibilidade de análise financeira detalhada que permita identificar pontos fortes, falhas ou omissões, sempre na perspectiva do essencial: a avaliação da eficácia operacional das unidades que prestam de facto serviços de saúde.

A conclusão final é simples, o problema do SNS, é o próprio conceito de SNS.

Dito por outras palavras, a saúde em Portugal foi – e encontra-se – refém da ideologia.


Gabriel BrancoConselheiro Nacional do ADN

Fonte: Inconveniente

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