O interesse em torno desta figura da nossa História inspirou a criação de filmes e séries para a televisão, como a série britânica “The Last King” *; motivou artistas plásticos na construção de uma estátua em sua honra encomendada pelo bairro de Queens em Nova York**; e conduziu à proliferação de inúmeras teses, romances e demais textos literários sobre a sua pessoa.
No meio desta profusão criativa que a figura em causa tem inspirado, o livro de Maria João da Câmara intitulado “Memórias Perdidas de Catarina de Bragança” é notavelmente inovador.
Apresenta, num português clássico e elegante e numa linguagem marcada pela naturalidade e o respeito, uma narrativa de memórias, que de forma não demasiadamente intimista, nos faz percorrer, pelos olhos dessa protagonista, o período da História de Portugal que vai desde a revolução de 1640 até aos finais do séc. XVII.
Maria João da Câmara parte da História com H maiúsculo, para construir a história de Catarina, sempre baseada em factos verídicos, em documentos e ocorrências, não se deixando tentar por devaneios ficcionados mais ou menos absurdos e levando o leitor a percorrer os acontecimentos que marcaram a vida desta Rainha, de uma forma frugal e desprovida de artifícios.
O que este livro tem de diferente, é precisamente ter menos ficção e mais História, e é apesar disso, ou exactamente por isso, que a sua leitura se torna cativante. O livro denota um exaustivo trabalho de investigação sobre este período histórico, e um conhecimento profundo sobre a vida de Catarina de Bragança.
Acredito que a Maria João terá passado dezenas de horas debruçada sobre textos relativos a esta personagem, e a intimidade que se vai estabelecendo com a figura em estudo ter-lhe-á dado legitimidade para se colocar um pouco dentro dela própria.
Ao dar-lhe vida através da redacção das suas próprias memórias, a autora está a revelar-nos o profundo conhecimento que tem desta Infanta de Portugal, não apenas factual, mas também, e principalmente, da sua personalidade.
Catarina de Bragança nasceu 2 anos antes da Restauração de 1640, no dia de Santa Catarina de Alexandria, por quem tinha uma grande devoção e sentimento de afinidade, dado que eram ambas princesas e ambas sofreram pela sua religião.
Tinha apenas 2 anos quando se deu a Restauração, momento em que o país retomou a sua independência pela mão do duque de Bragança, D. João, aclamado rei no dia de Nossa Senhora da Conceição e de quem Catarina era filha.
Tal data é para nós, portugueses, motivo de grande júbilo, pois recuperámos a nossa soberania face a Castela e pudemos prosseguir pela História como país livre e independente.
Não posso deixar de referir o quanto a abolição prevista para o feriado do 1º de Dezembro fere o nosso patriotismo e põe em causa a importância da memória colectiva deste acontecimento. Mas se muitas vezes pensamos nas reuniões dos 40 Conjurados, no golpe ocorrido no Palácio Real com a deposição da Duquesa de Mântua, e na aclamação de D. João de Bragança como Rei de Portugal, pouco nos debruçamos sobre os anos que se seguiram a este evento.
Esses foram anos inimaginavelmente difíceis. Maria João da Câmara dá-nos conta de como foi preciso lutar pela confirmação da nova dinastia, do papel fundamental que Dona Luísa de Gusmão teve em todo esse processo, e de como o seu exemplo foi importante na moldagem da personalidade e dos valores de sua filha Catarina.
Personalidade marcada pela total honestidade e rectidão e sempre inspirada no sentido do dever e na fidelidade, na austeridade e na modéstia e na dignidade da sua condição de Infanta de Portugal e depois de Rainha de Inglaterra.
No decurso do reinado de D. João IV, as hostilidades entre Portugal e Espanha desenvolveram-se sob a forma de conflitos armados que incluíram as batalhas de Arronches, Linhas de Elvas e Montes Claros, pois a soberania de Portugal não foi reconhecida de imediato, e durante muitos anos Espanha continuou a manter as suas pretensões ao domínio de Portugal.
Com a morte de D. João IV, D. Luísa ficou a braços com enormes dívidas e teve de carregar o fardo de reger um reino que ainda não era reconhecido como tal aos olhos da Cristandade, do Papa e dos Reis europeus.
A diplomacia castelhana desempenhava o seu papel ao denegrir a imagem de Portugal no estrangeiro, sendo os representantes portugueses mal recebidos e pouco ouvidos nas cortes europeias.
Foi neste contexto que o casamento de Catarina de Bragança surgiu como possibilidade de estabelecimento de alianças que dessem credibilidade e força a Portugal.
Depois das tentativas frustradas de estabelecer o casamento de Catarina, primeiro com D. João d’Áustria e depois com Luís XIV de França, foi finalmente conseguido um acordo com Inglaterra, onde Carlos II tinha recentemente sido proclamado rei após a restauração da monarquia.
Os seus conselheiros teriam preferido uma noiva protestante, mas Carlos II acabou por escolher a princesa portuguesa. Em Junho de 1661 o acordo nupcial foi assinado.
Em troca de Bombaim, Tânger e livre comércio com o Brasil e Índia, Inglaterra oferecia a Portugal ajuda militar contra a Espanha.
A nossa Infanta Dona Catarina de Bragança partiu para Inglaterra com 23 anos, e só regressaria a Portugal aos 55 anos, já viúva. Grande parte do livro ocupa-se deste período da vida daquela que se tornou, pelo casamento, rainha de Inglaterra.
O livro revela-nos os pensamentos de Catarina de Bragança sobre a sua ida para Inglaterra, e a sua forma de encarar este desafio, que era para ela, acima de tudo, um dever para com o seu país. Não obstante, havia uma predisposição positiva em relação ao futuro marido, através das cartas que entretanto ele lhe escrevia em tom respeitador e atencioso, em que a tratava por “Senhora e Mulher minha” e que terminava com as despedidas “do marido muito fiel que vossas mãos beija”.
A Infanta Dona Catarina revelou uma inesperada capacidade de adaptação a um meio tão diferente daquele que conhecia na paisagem e no clima, nos usos e nos costumes, nos valores e nos comportamentos, certamente determinada pelo amor pelo seu Rei, sem que nunca houvesse a quebra da sua honestidade.
Ao longo da sua vida foi sempre movida pela Fidelidade.
Fidelidade a Portugal, cujas saudades nunca a largaram e onde ao fim da sua vida, depois de tantos desgostos, iria encontrar a paz.
Fidelidade à igreja católica que sempre serviu.
Fidelidade ao Rei, seu marido e grande amor de toda a sua vida.
Este marido veio a revelar-se, no entanto, muito pouco fiel.
Apesar disso, Carlos II teve sempre uma elevada estima e consideração por Catarina, e insistiu para que ela fosse tratada com respeito, tendo recusado divorciar-se quando confrontado com o facto de não ter descendentes legítimos.
Após a morte de Carlos II, Catarina obteve autorização para voltar a Portugal, tendo sido recebida com grande alegria e olhada pelo povo como “o anjo da guarda” do país.
Após o seu regresso, e com a doença de seu irmão D. Pedro II, Catarina assumiu a regência do Reino, tendo demonstrado qualidades de liderança, força, firmeza e capacidade.
Depressa revelou aptidões semelhantes às da sua mãe para os assuntos de Estado e obteve o amor e o respeito da Nação.
Por ocasião da sua morte, em 1705, teve honras de monarca reinante no seu funeral e a corte usou luto durante um ano.
Este livro dá-nos a imagem de uma mulher que soube cumprir o dever para com o seu país até ao fim, suportando humilhações, solidão, inveja, desprezo, saudades.
Catarina reconheceria mais tarde o seu papel de Rainha de Inglaterra como tendo sido um sacrifício apenas para benefício de Portugal. Mas a sua imagem é também a de uma mulher extremamente devota, inteligente, sensata, doce e lutadora, humilde e digna, que mesmo na adversidade conseguiu de certa forma ser amada pelo seu marido e apreciada pelo povo inglês.
O povo português, por seu lado, sempre admirou esta sua princesa, a cuja vida deu grande valor e a quem sempre apoiou.
Pessoalmente, confesso sentir uma grande simpatia por esta Portuguesa de cujo pai, D. João IV, o meu marido e os meus filhos são igualmente descendentes.
Este laço de família, e a noção da brevidade do tempo, fazem-me sentir próxima desta princesa, passados que são 307 anos sobre a sua morte.
Admiro principalmente o seu sentido de dever e os sacrifícios que fez pela Pátria, a sua força e resistência às dificuldades, a sua resiliência feita de adaptação e de fidelidade; valores e atitudes que deverão ser hoje motivo de esperança e inspiração para tantos portugueses.
E termino citando a dedicatória do livro, que faço também minha:
“À mulher portuguesa, que sempre soube, nos momentos difíceis, arregaçar as mangas e lutar, à sua maneira, por Portugal”.
D.Isabel de Bragança, Duquesa de Bragança
Fonte: Livraria Ferin
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