Dom João V tomando chocolate
Historiografia ou ideologia ?
Não há mito que não se alimente sem mentira; não há mentira que subsista com conhecimento. Desarmar os mitos pela via historiográfica revisionista, eis a única receita para desarmadilhar as verdades engrossadas pela tradição, aquelas que, de tão repetidas, se transformaram em doutrina indiscutida. É sabido que desde o século XIX se montou intensa campanha difamatória contra a dinastia de Bragança e contra a nobreza supostamente decaída a partir "absolutismo" do período joanino. Em Rebelo da Silva (A Última Corrida de Touros Reais em Salvaterra, 1848; A Mocidade de D. João V, 1852-53), em Oliveira Martins (História de Portugal e Portugal Contemporâneo), em Junqueiro (Pátria, 1896), em Júlio Dantas (Os inquéritos médicos às genealogias reais portuguesas - Avis e Bragança, 1909) e até na sempre frágil preparação historiográfica de Saramago perpassam a "maldição dos Bragança", a "degenerescência" da estirpe - beata, casmurra, idiota, caprichosa, reaccionária, decrépita, sifilítica, vítima da consanguinidade, violenta ou afásica - e a sua responsabilidade no Finis Patriae. Tudo o que se escreve e repete na Academia parece carecer daquele mínimo de rigor investigativo que coroa a História como conhecimento do tempo passado. Infelizmente, praticamente tudo quanto se faz passar por História é instigado por ideologia ou, pior, por propaganda, não lhe faltando, até, a adjectivação (o pior inimigo da serenidade) e o anedotário jamais sustentado por um simples documento de arquivo.
A nobreza: uma ordem decaída ?
A historiografia dita liberal, proto-republicana ou republicana, estabeleceu uma teoria da decadência nacional pondo de relevo a quebra de vitalidade da antiga nobreza, que supostamente se deixara envilecer, amolecer e domesticar na "vida da Corte", nas procissões "fradescas", nas caçadas e no marialvismo.
Do século XVII não há vestígio dessa queda, nem mesmo no século XVIII. Sirvamo-nos de um recorrente exemplo de mentira institucionalizada. Em compêndios de história seiscentista afirma-se, amiúde, que um dos requisitos para a ocupação do posto de sargento era o de saber contar, ler e escrever, "pois os oficiais são nobres", ou seja, assinam de cruz, são analfabetos. Gastão de Mello de Matos, historiador amante do rigor e da mais exigente tradição positivista, procurou em vão tal documento nos arquivos nacionais para comprovar tal exigência. Nada encontrou. Talvez não fosse necessário tal esforço, pois bastar-lhe-ia ter compulsado o célebre Abecedário Militar do que o Soldado deve fazer para chegar a ser Capitão e Sargento, de João de Brito de Lemos (1631) para ali encontrar cabal desmentido de tal fantasia. O que João de Brito de Lemos afirmava era, apenas, que os sargentos deveriam saber ler e escrever para "fazerem a lista dos soldados da [respectiva] companhia". Dos oficiais, para além do sentido da honra, da lealdade, do serviço do Rei, exigia-se conhecimentos de táctica, teoria de fogos e castramento (ou seja, de defesa).Ora, conhecendo a rol de bibliografia seiscentista e setecentista sobre a arte militar, sabe-se pelos róis das bibliotecas pertencentes à nobreza portuguesa, que tais obras eram conhecidas, lidas e até anotadas pelos respectivos proprietários.
Outra mentira recorrente afirma que os altos cargos no Ultramar eram confiados a nobres impreparados, pelo que para o declínio imperial teria concorrido a fraqueza da elite dirigente. É hoje sabido que os Vice-Reis portugueses na Índia foram, ao longo do século XVIII e até 1821, homens de assinalável mérito, capacidade e preparação, o contrário da lenda-negra oitocentista finissecular. Eram homens possuidores de bibliotecas, com interesses ecléticos, da História Antiga e Moderna, da religião, legislação, literatura, Filosofia, teoria política e questões militares aos clássicos (Horácio, Cícero, Marco Aurélio) (1); mais, eram poliglotas, falavam, liam e escreviam latim e francês, línguas cultas por excelência e possuíam alta consciência e segurança de si mesmos, o que lhes permitia lidar com homens de diferentes condições. Estavam, pois, preparados para o exercício do mando. “Os [Reis] escolhem sempre para este cargo (…) pessoas de raras qualidades e sangue muito ilustre em que concorrem esforço, entendimento e experiência na guerra e em todas as coisas necessárias para a administração de tal cargo" (2).
Um dos mais importantes combates pela reposição da seriedade no enfrentamento com a sub-cultura republicana é, pois, o debate historiográfico. Se os monárquicos o não compreenderem, terão sempre de partir da desvantagem de lutarem contra imagens negativas poderosas, insusceptíveis de vergarem no debate palavroso. Há que combater a mentira com a História.
(1) ver A.J.R Russel-Wood, “Governantes e agentes”, História da expansão portuguesa, v.3, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, p.179.
(2) ver Francisco Mendes da Luz (ed), Livro das cidades, e fortalezas, que a coroa de Portugal tem nas partes da India, e das capitanias, e mais cargos que nelas há, e da importancia deles, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1960, p.9.
Miguel Castelo-Branco