Memórias da monarquia portuguesa permanecem escondidas na selva timorense. Guardadas como tesouros durante a ocupação indonésia ou a invasão japonesa por um liurai, guardião das relíquias por herança familiar.
Mau Pelo, liurai timorense, 70 e tal anos – não sabe ao certo -, fato monárquico português que será do século XVIII, azul-escuro cruzado por duas faixas rosa, sujas, tem as mãos secas, finas e cheias de sulcos, apoiadas em duas bengalas. Está sentado numa cadeira de plástico, hirto, quase parece de cera, no interior de uma pequena casa de cimento, branca e azul, no topo de uma escada, também de cimento, com degraus íngremes e de uma altura que obrigam a uma subida pouco natural até lá cima.
Se calhar é propositado, para que nesta casa mais moderna imitem a altura dos degraus de madeira que se tem que subir para chegar à casa tradicional em si, a ‘Uma Lulik’, a casa sagrada, do outro lado do largo, em cuja sombra brincam quatro ou cinco miúdos. Mau Pelo vestiu-se propositadamente para receber a reportagem da Lusa, guiada nesta viagem ao passado por uma equipa do Arquivo e Museu da Resistência Timorense, em Díli, liderada por um seu familiar, Álvaro Rosário Vasconcelos.
O fato está desgastado, com as insígnias nos punhos a desfazerem-se, botões dourados, cada um com as armas de Portugal, as duas bengalas de madeira, decoradas com um punho também dourado, marcado por desenhos de flores e conchas.
Mas é quase um milagre que algo do século XVIII, que já esteve escondido em buracos em vários pontos de Timor-Leste, ainda esteja neste estado. Ou que sequer exista. Como é ainda mais milagroso que tenha sobrevivido, apesar do mau estado em que já se encontra, o que chama aqui os mais curiosos: uma bandeira de D. Maria I, enviada para Timor-Leste e que tem sido guardada, ao lado de vários documentos, esses ainda em pior estado, incluindo um alvará real.
O primeiro guardião destas relíquias foi Mau Dua, depois Manuel – “não tem nome gentio” – depois Mau Pelo. O seguinte chama-se Domingos Lemos e já ajuda o liurai a mostrar os documentos e a bandeira, a fazer a bênção com malus, areca e betel ao parente que serve de guia nesta viagem, Álvaro Rosário Vasconcelos. É também descendente directo da linhagem que deveria cuidar da bandeira, mas a honra ficou com Mau Pelo e quando este morrer passará para o jovem Domingos Lemos, que já é chefe de suco.
Ainda que hoje, como admite, os mais jovens liguem muito menos a estas coisas e os liurais estejam menos presentes na vida diária de Timor-Leste e dos timorenses. O culto à bandeira de Portugal, é um vínculo várias vezes celebrado por reinos timorenses que ainda hoje é, para muitos, algo incompreensível, mal percebido, mal interpretado.
Foi lido, erradamente, como um ato de resistência à ocupação indonésia quando, na prática, como esta bandeira desbotada e degradada o demonstra, já era um símbolo sagrado para os reinos timorenses muito antes, há vários séculos. Contam os Lia Na’in, os ‘pais’ da oralidade histórica e da ligação timorense ao seu passado, que as bandeiras representam alianças históricas, muitas vezes confirmadas com os inquebráveis pactos de sangue.
Fonte: Lusa
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