Ficou hoje a conhecer-se mais um dos muitos projectos apresentados para o remate da fachada poente daquele que é o maior e mais imponente edifício público da capital portuguesa.
Dispensando quaisquer comentários a respeito do gosto ou desgosto que os esboços mostraram, esta construção, mesmo com o previsível isco dos fundos do Turismo e da apresentação em exposição permanente das muito desfalcadas Jóias da Coroa, não pode ser iniciada sem a prévia consulta a quem mais interessa, ou seja, os habitantes de Lisboa.
O Palácio da Ajuda não é uma construção da qual se possa dispor à la carte. Desde que se ergueu tem sido uma sede de poder, seja ele o monárquico ou o republicano. Nele se pavoneiam vaidades na recepção do corpo diplomático e ali se inauguram presidências e governos, por muito efémeros que sejam. É um local emprestado pela nossa história, um eco de um passado relativamente glorioso. Aqueles brilhos dos adamascados e dourados, as pratas e porcelanas, as pinturas e tapeçarias, os bibelots assinados, os torneados do mobiliário daquela mescla de estilos, o bric-a-brac de Dª Maria Pia de Sabóia, impressiona os nacionais e os estrangeiros. Não é nenhuma novidade, aquela colecção marcou uma época e por milagre praticamente íntegra - apesar dos acontecimentos da 1ª república, da visita recolectora da aventureira com quem o infante D. Afonso se casou, da retirada de mobiliário e peças decorativas que o regime da 2ª república colocou em embaixadas -, é um cenário infinitamente superior em termos de prestígio e harmonia, a uma banal construção que qualquer um dos regimes que sucedeu ao ciclone de 1910, tenha erguido nas respectivas Expo.
Poderá a entidade mais ansiosa, a Câmara Municipal, esgrimir argumentos a favor da "rápida conclusão de uma obra que já tarda e é urgente", mas estas atitudes em nada abonam quem decide e muito dependerá da confiança de uma população muito desconfiada por este inesperado inferno eleitoral de ciclovias, alargamento de passeios, demolições a eito e sem consulta, desrespeito pelo próprio inventário municipal e outras habituais habilidades comezinhas. Bem poderá então escudar-se atrás do MC e do Turismo, mas o protagonismo é totalmente seu, nada de manobras de ilusionismo. O protagonismo e o interesse.
O projecto existe há bastante mais de meio século e é da autoria do arquitecto Raul Lino que se manteve fiel à ínfima parte construída do risco original que a Ajuda teve nos finais do século XVIII e alvorada de oitocentos. O Palácio jamais foi concluído e será supérfluo inventariarmos as razões para tal incúria sobretudo devida às vicissitudes da política, às mudanças e de regime e à sempre latente penúria financeira. Anos após a sua concepção, Salazar, a braços com uma guerra em três frentes africanas e assoberbado pela construção da Ponte, não pôde dar andamento a este projecto que hoje, a ter sido concluído, já teria beneficiado da patine da passagem de meio século e muito provavelmente, com interiores a condizerem com a fachada. Seria parte da paisagem urbana. Não se fez, paciência, outros valores se levantaram, mesmo quando alguém teve a ideia de construir de raiz um Centro Cultural em Belém, nem sequer aproveitando o que já existia no alto do bairro lisboeta da Ajuda. Idem quanto ao Museu dos Coches, naquelas cíclicas, bastante oportunas para uns tantos e previsíveis derrapagens orçamentais que em muito lesaram o crédito e a respeitabilidade de quem decidiu e ordenou. Este é o país em que os cidadãos enviam cartas registadas aos governantes e estes, nada preocupados, nem sequer se dão ao trabalho de acusar a recepção. Foi o que sucedeu há perto de três décadas, quando do anúncio da construção do CCB e alguém lhes terá chamado a atenção para o aproveitamento da parte a reconstruir do Palácio da Ajuda. Pelos vistos, continuamos neste estranho caminho da surda arrogância. O mesmo se pode dizer a fundos esfumados, como aqueles deixados pela Sra. Reagan que também terá apreciado o potencial do edifício.
Mais próximo de nós, ainda está o embaraço nacional acerca da retirada russa da exposição do Hermitage na Ajuda, pois consideraram o palácio na sua secção poente, impróprio para a apresentação das periódicas colecções imperiais. Não valerá a pena o recurso a subterfúgios lava-faces, pois foi isto mesmo o que aconteceu.
Este edifício não pode ser mais um passageiro pasto de modas e vaidades. Não pode, é campo interdito. Bem vistos, os factos, este anúncio de surpresa é mais um exercício devanitas política embrulhada caprichosamente em argumentos apenas válidos, porque óbvios ao longo de mais de duzentos anos. O Palácio Real ou Nacional, como queiram, consiste num património que condensa a história de um século pleno de acontecimentos e que está recheado de uma inestimável colecção de época, embora, tal como as Jóias da Coroa, privada, como acima dissemos, de inúmeros elementos que a queda da Monarquia fez por vários meios sumir. Há que valorizá-lo e para isso podem e devem ser despendidas quantias necessárias que estimularão a criatividade, a arte de bem fazer, o labor dos artesãos nacionais e o interesse de uma miríade de pequenas e médias empresas de construção. A cultura não é despesa, por muitos fundos que nela se vertam sob supervisão e criteriosamente. Trata-se de um investimento e para mais, da garantia da identidade nacional que é pontilhada por um certo sentido de orgulho.
Os decisores podem pensar o que entenderem acerca das suas excelsas personalidades, mas não vivem num exclusivo Olimpo. Desçam à terra e procedam então a uma consulta popular que decida a viabilidade do projecto de Raul Lino ou a alternativa hoje apresentada. Num país onde a palavra mais usada pelos agentes da política é democracia! democracia! democracia!, do que que têm medo os senhores da nossa situação?
Nuno Castelo-Branco
Fonte: Estado Sentido
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