No passado dia 23, aproveitando uma deslocação a Madrid por razões de trabalho, tive o privilégio de visitar a exposição que o Museu do Prado dedicou a Hieronymus Bosch, no quinto centenário da sua morte. Foi tal o êxito desta iniciativa que, apesar de inaugurada a 31 de Maio, a sua conclusão, prevista para 11 de Setembro, teve que ser adiada quinze dias.
Bosch não é um pintor desconhecido em Portugal: uma das suas mais emblemáticas obras, o tríptico das tentações de Santo Antão, faz parte do espólio do Museu Nacional de Arte Antiga. Nascido provavelmente no ano de 1450, em ‘s-Hertogenbosch (Bois-le-Duc), uma povoação ao norte do ducado de Brabante, na actual Holanda, Hieronymus van Aken passou à história não com o seu apelido, mas com o nome que tomou da terminação da designação da sua cidade natal: Bosch. Consta que Filipe I de Portugal e II de Espanha foi grande apreciador da obra de ‘el Bosco’, como é designado este seu súbdito em terras espanholas, o que explica a existência de muitas obras suas na península ibérica.
A iniciativa do Museu do Prado não é inédita, pois surgiu na continuidade da exposição que já se tinha celebrado, também este ano, na terra natal do pintor neerlandês, com um expressivo título: ‘Bosch. Visions of Genius’.
Quem percorresse, com alguma atenção, a meia centena de obras expostas, não teria grande dificuldade em reconhecer a genialidade de Bosch. De facto, a sua pintura é de uma surpreendente mestria técnica, sobretudo pela criatividade das composições, quase sempre de uma enorme complexidade. Talvez o que mais surpreenda seja a originalidade na forma como são representados os temas, em geral de índole religiosa.
Muito embora a sua pintura não se possa considerar sacra, porque não cumpre o objectivo de oferecer imagens que favoreçam a devoção dos fiéis, é no entanto uma arte essencialmente cristã, em que predomina a temática escatológica, na representação fantástica dos dois destinos eternos: a salvação e a condenação. Mas Bosch não se limita a representar o paraíso e o inferno: desenha-os com uma tal originalidade que, por vezes, parece antecipar-se aos mais audazes representantes do surrealismo moderno.
O seu traço é de uma enorme precisão, de uma perfeição minuciosa e, ao mesmo tempo, de uma grande tensão dramática: mesmo quando se atreve a devaneios tão grotescos que quase parecem risíveis, as suas telas nunca esquecem a dimensão trágica do sobrenatural. Na sua pintura há sempre um ensinamento moral, mesmo que os pormenores fantásticos possam levar a crer que tudo não é mais do que uma ilusória visão de um mundo irreal. Pintando, lado a lado, o paraíso e o mais incrível deboche, Bosch grita, ao homem de todos os tempos, o sentido moral da existência humana: consoante a vida terrena, cada qual terá o prémio ou o castigo que merecer.
Para quem ainda pensa que a fé cega a razão e corta as asas à imaginação, Bosch prova o contrário: a revelação sobrenatural não só não limita a visão e compreensão da realidade, como desperta a imaginação e o entendimento para novas e insuspeitáveis dimensões. Mesmo quem não reconhece, nem aprecia, a acção espiritual e social da Igreja, não pode deixar de louvar o extraordinário contributo do catolicismo para a cultura humana. Nenhuma outra religião foi, decerto, tão importante para o desenvolvimento do conhecimento e da arte.
Uma outra nota é igualmente digna de menção: a pintura de Bosch é também um exercício de liberdade, enquanto expressa uma veemente crítica contra os poderes instituídos. É chamativo que, por exemplo, no tríptico do carro de feno, o pintor tenha representado papas, reis e bispos, entre os que desprezam o chamamento do alto, na pessoa de um anjo que aponta para o Crucificado, e se deixam seduzir pela palha das coisas vãs.
Ao invés do que uma certa historiografia laica fez crer, a Europa cristã, não obstante a inegável actuação repressiva de alguns poderes civis e religiosos, foi também um espaço de relativa liberdade de pensamento e de expressão, pois até a crítica religiosa e social, também das máximas autoridades eclesiásticas e políticas, se consentia.
Pelo contrário, nos actuais regimes totalitários, não se permite nenhuma censura política ou social; e, nos Estados onde vigora a lei islâmica, qualquer alusão religiosa menos ortodoxa é tida por blasfema e punida com a pena de morte. Pelos vistos, uns e outros estão hoje mais atrasados do que estava a Europa católica do século XV…
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