Diário de N. White Castle: 2 de Outubro de 1910, a chegada a Lisboa
Após uma breve viagem marítima sem história, cheguei esta manhã à capital portuguesa. Habituado à exiguidade territorial que os mapas mostram, jamais pensei encontrar uma cidade como Lisboa, mas sim um pequeno porto semelhante a tantos outros que já vira nas minhas meridionais deambulações em toda a bacia do Mediterrâneo. Esta cidade é diferente, beneficiando de uma entrada natural que só pode ser comparada ao Corno de Ouro da capital dos sultões. Tal como Constantinopla, Lisboa vista do mar parece incandescente, pois não podemos considerar a longa desembocadura do Tejo como um rio, dada a imensidão do potencial porto interior. A montante, deparamos com um espantoso mar interior a que deram o nome de Mar de Palha e que reflecte a luz solar com uma inaudita intensidade, surgindo a capital como uma miragem, onde a indefinição das formas lhe confere uma grandiosidade insuspeitada. Este imenso porto de refúgio, é uma das mais privilegiadas posições estratégicas do mundo, pois por esta costa passa todo o comércio que liga as metrópoles europeias ao Novo Mundo e às colónias em África e na Ásia. Conhecendo bem a nossa longa convivência com este país, compreende-se facilmente o vital interesse que representa para a Royal Navy, a manutenção desta maravilha natural em mãos amigas.
Desde a entrada daquilo a que os portugueses chamam a Barra, desfrutamos do privilégio de uma vista única da margem norte, pontilhada por casario ainda relativamente disperso e que num futuro que julgo não muito distante, acabará por unir a vila de Cascais à própria capital. Notam-se claros indícios do progresso material deste século, uma vez que tal como em qualquer uma das nossas cidades ribeirinhas, vislumbro muitas chaminés fumegantes, este mal necessário que a industrialização nos faz pagar para podermos auferir das apregoadas comodidades já indispensáveis. Infelizmente, neste caso parece não ter existido uma verdadeira preocupação em criar uma zona industrial, pois é notória a existência de fábricas espalhadas um pouco por toda a parte, mesmo aquela - que me disseram ser a do gás - construída mesmo diante de um dos principais monumentos do país, a Torre de Belém. O comandante disse-me que consta que a rainha Amélia muito tem admoestado consecutivos governos no sentido de ser desmantelada a dita fábrica, colocando-a noutro lado. Para grande irritação da soberana, a inércia e a falta de coragem para enfrentar os interesses económicos, vão mantendo a situação num impasse que visivelmente tem consequências desastrosas para a integridade desta construção com quatrocentos anos.
Após deixar a minha bagagem no Hotel Avenida, decidi apresentar-me na nossa Legação, situada na parte alta, num bairro bastante burguês denominado a Lapa. Pouco interessado nas ociosas tertúlias próprias do corpo diplomático, fui contudo praticamente coagido a voltar ao palacete nesta mesma noite. Realizar-se-á um jantar com alguns dos mais destacados homens de negócios ingleses estabelecidos em Portugal. Deixaram-me claro que o meu conhecimento da língua, será preciosa ajuda para o estabelecimento de conversas com algum interesse para a avaliação da situação política neste país. Não deixarão de estar presentes alguns portugueses, na sua maioria comerciantes, mas disseram-me que as expectativas vão todas no sentido de auscultar a opinião de alguns oficiais do exército. Vamos ver, todo este cheiro a pólvora e a conspiração começa a despertar a minha curiosidade.
A Baixa é talvez a zona mais animada, aí se situando o melhor comércio, bancos, casas de seguros e empresas de navegação. É espantosa a multidão nas ruas, pois dir-se-ia estarmos não num dia normal de trabalho, mas no reboliço próprio de festas populares. Bandos de ociosos à porta de cafés e de casas que vendem vinho e carvão, parecem discutir animadamente a razão das suas vidas, ou talvez apenas, a derradeira intriga ou boato que aqui alastra como fogo em palha seca. Já quando estivera em Goa, tivera a oportunidade de me inteirar da apetência que uma certa camada urbana tinha por historietas mirabolantes, geralmente desprovidas de qualquer veracidade, mas capazes de alimentar todo o tipo de sentimentos, desde o ódio mais feroz e irracional, até à compaixão que implica a lógica beatitude da criatura alvo da conversa. E o mais interessante, consiste no curioso facto de um beneficiado pelas palavras de louvor, ser no próprio dia e devido a um outro boato, passar a ser arrastado até às portas do inferno, onde, claro está, existem sempre uns pobres diabos capazes de unicamente se exprimir no calão mais grosseiro de que esta rica língua é capaz.
Muito a propósito, decidi entrar num café situado na Praça D. Pedro IV, local que como muitos outros possui duas denominações. Oficialmente, tem o nome do monarca luso-brasileiro, mas para o comum dos mortais, sempre foi e será o Rossio. Este café, o Gelo, é um local já meu conhecido apenas pelo nome, pois já há muito sabia que nas suas salas se tinham reunido os conspiradores republicanos que assassinaram o rei Carlos e o príncipe Luís Filipe. Discutia-se a alta voz e qualquer um podia escutar planos conspirativos, atoardas e o constante e impiedoso martelar de reputações. Dir-se-ia ser Portugal uma terra de milionários, pois os cafés encontram-se a abarrotar a qualquer hora do dia e fiquei a pensar com os meus botões, do que viverá toda esta gente que passa os seus dias diante de copos e garrafas? A cidade encontra-se razoavelmente limpa, nota-se uma certa prosperidade e os armazéns da zona do Chiado estão muito bem fornecidos de todas as novidades parisienses que parecem ser da preferência dos portugueses da capital. Tal como em Londres, Viena ou Paris, as equipagens rivalizam no luxo das carruagens abertas e as senhoras burguesas, geralmente acompanhadas por uma filha ou pela empregada, fazem a rotina diária das lojas, comprando mais um par de luvas ou um extravagante e emplumado chapéu para um hipotético grande dia de festa. Casas de chá mobiladas com esmero e nas quais podemos degustar deliciosas especialidades locais, oferecem o espectáculo da passagem de la mode parisiènne, tal como se verifica em qualquer outra cidade europeia. Lisboa possui várias estações de caminhos de ferro, de onde partem comboios para todas as regiões do país, existindo uma muito razoável cobertura da rede ferroviária que é moderna e segundo dizem, eficiente. O porto está praticamente sempre lotado de navios que dos confins do planeta, trazem das colónias os produtos destinados ao consumo interno e à exportação, adivinhando-se facilmente - se as condições políticas assim o permitirem - um futuro de progresso material que não deixará de beneficiar amplas camadas da população. O país é territorialmente pequeno, mas espantosamente, possui o terceiro maior Império colonial, exercendo a sua soberania sobre possessões banhadas por três oceanos e continentes. É certo que o facto de pertencer à sempre inconvenientemente considerada esfera de influência britânica, permite-lhe o luxo de exercer o domínio sobre territórios infinitamente mais valiosos que aqueles onde flutuam as bandeiras da Alemanha ou da Itália, por exemplo.
No café Gelo, discutiam-se animadamente as últimas novidade relativas ao mundo da política local e as responsabilidades sobre imaginárias desgraças recaíam alternada mas invariavelmente nas pessoas do rei Carlos ou Manuel, na rainha Amélia e claro está, nos padres, bem capazes, segundo esta gente, de todos os crimes que a mente mais retorcida pode imaginar. Seguros de verem em mim um estrangeiro disposto a escutá-los e que ainda por cima fala português, procuraram convencer-me acerca da justeza das suas ideias e projectos inconsistentes e recorrendo ao habitual argumento do Ultimatum, julgaram-me facilmente coagido pela timidez. Retorqui secamente que humilhação muito maior infligíramos à França em Fachoda, sem que por isso se pensasse seriamente derrubar o regime vigente naquele país. Mais acrescentei que isso provava a consistência de uma opinião pública que sabia distinguir o essencial daquilo que é perfeitamente negligenciável. Logo decorridos alguns minutos, pareceu-me que esta gente vive obcecada com sonhos de grandeza e com dogmas redentores de uma situação que afinal só se resolverá com persistência no trabalho, banco de escola, paz política e respeito pela hierarquia, coisa impossível de imaginar nestes ligeiros espíritos em teimosa efervescência. Poderia executar rapidamente um xeque-mate aos malcriados palradores, questionando-lhes acerca daquilo que consideram ser uma república, que tal como a Inglaterra, Portugal é e sempre foi. Creio que para os meus interlocutores, consiste num mero sucedâneo dos santinhos milagreiros que devotadamente adoravam na sua infância, esperando curas, alimentação farta e se possível, um bilhete premiado na lotaria. No fundo, para esta gente, a república é apenas um milagre, talvez tirado das profundezas de uma fé aparentemente renegada. Rapidamente cansado da colossal ignorância orgulhosamente assumida pelos revolucionários profissionais, decidi não perder mais tempo, pelo que polidamente me despedi, manifestando o interesse em ver o couraçado brasileiro S. Paulo que transporta o presidente Hermes da Fonseca que está de visita a este país. Maravilha técnica do engenho britânico, este navio e o seu irmão gémeo Minas Gerais, são decididamente peças essenciais na manutenção do status quo na sempre instável região do cone sul americano.
Descendo a Rua do Ouro - a oficialmente denominada Rua Áurea -, cheguei ao preciso local onde caíram varados pelas balas assassinas o rei Carlos e o seu herdeiro. As fachadas poente da magnífica Praça do Comércio - o Terreiro do Paço dos lisboetas eBlack Horse Square entre os meus compatriotas -, ostentam as indeléveis marcas da chacina, pois a cantaria foi fortemente atingida durante o tiroteio daquela tarde de inverno. Fiquei a pensar se a versão que corre, a de um acto isolado de dois assassinos, pode ser sustentada. Não foram apenas eles, tenho a certeza.
Bordejada por árvores que oferecem protecção ao inclemente sol, omnipresente durante mais de metade do ano, esta praça possui uma magnífica estátua ao rei José I e evidentemente, no seu pedestal podemos olhar para o rosto severo e decidido do marquês de Pombal, o hábil ministro que conduziu os trabalhos de reconstrução da cidade destruída pelo cataclismo de 1755. O comércio que aqui se pratica é bastante diferente daquele que vimos na Baixa, pois no Terreiro encontramos vendedores ambulantes e gente que vem dos arrabaldes da cidade para vender os seus produtos hortícolas e animais de capoeira. Os preços são razoáveis para a nossa bolsa, mas continuo a interrogar-me acerca da inextricável capacidade de tantos portugueses em permanecerem vivos e de boa saúde, dada a bem visível inércia e fare niente que salta aos olhos em praticamente todas as ruas da capital.
É uma interrogação que não deixarei de colocar esta noite aos meus convivas na embaixada.
Após uma breve viagem marítima sem história, cheguei esta manhã à capital portuguesa. Habituado à exiguidade territorial que os mapas mostram, jamais pensei encontrar uma cidade como Lisboa, mas sim um pequeno porto semelhante a tantos outros que já vira nas minhas meridionais deambulações em toda a bacia do Mediterrâneo. Esta cidade é diferente, beneficiando de uma entrada natural que só pode ser comparada ao Corno de Ouro da capital dos sultões. Tal como Constantinopla, Lisboa vista do mar parece incandescente, pois não podemos considerar a longa desembocadura do Tejo como um rio, dada a imensidão do potencial porto interior. A montante, deparamos com um espantoso mar interior a que deram o nome de Mar de Palha e que reflecte a luz solar com uma inaudita intensidade, surgindo a capital como uma miragem, onde a indefinição das formas lhe confere uma grandiosidade insuspeitada. Este imenso porto de refúgio, é uma das mais privilegiadas posições estratégicas do mundo, pois por esta costa passa todo o comércio que liga as metrópoles europeias ao Novo Mundo e às colónias em África e na Ásia. Conhecendo bem a nossa longa convivência com este país, compreende-se facilmente o vital interesse que representa para a Royal Navy, a manutenção desta maravilha natural em mãos amigas.
Desde a entrada daquilo a que os portugueses chamam a Barra, desfrutamos do privilégio de uma vista única da margem norte, pontilhada por casario ainda relativamente disperso e que num futuro que julgo não muito distante, acabará por unir a vila de Cascais à própria capital. Notam-se claros indícios do progresso material deste século, uma vez que tal como em qualquer uma das nossas cidades ribeirinhas, vislumbro muitas chaminés fumegantes, este mal necessário que a industrialização nos faz pagar para podermos auferir das apregoadas comodidades já indispensáveis. Infelizmente, neste caso parece não ter existido uma verdadeira preocupação em criar uma zona industrial, pois é notória a existência de fábricas espalhadas um pouco por toda a parte, mesmo aquela - que me disseram ser a do gás - construída mesmo diante de um dos principais monumentos do país, a Torre de Belém. O comandante disse-me que consta que a rainha Amélia muito tem admoestado consecutivos governos no sentido de ser desmantelada a dita fábrica, colocando-a noutro lado. Para grande irritação da soberana, a inércia e a falta de coragem para enfrentar os interesses económicos, vão mantendo a situação num impasse que visivelmente tem consequências desastrosas para a integridade desta construção com quatrocentos anos.
Após deixar a minha bagagem no Hotel Avenida, decidi apresentar-me na nossa Legação, situada na parte alta, num bairro bastante burguês denominado a Lapa. Pouco interessado nas ociosas tertúlias próprias do corpo diplomático, fui contudo praticamente coagido a voltar ao palacete nesta mesma noite. Realizar-se-á um jantar com alguns dos mais destacados homens de negócios ingleses estabelecidos em Portugal. Deixaram-me claro que o meu conhecimento da língua, será preciosa ajuda para o estabelecimento de conversas com algum interesse para a avaliação da situação política neste país. Não deixarão de estar presentes alguns portugueses, na sua maioria comerciantes, mas disseram-me que as expectativas vão todas no sentido de auscultar a opinião de alguns oficiais do exército. Vamos ver, todo este cheiro a pólvora e a conspiração começa a despertar a minha curiosidade.
A Baixa é talvez a zona mais animada, aí se situando o melhor comércio, bancos, casas de seguros e empresas de navegação. É espantosa a multidão nas ruas, pois dir-se-ia estarmos não num dia normal de trabalho, mas no reboliço próprio de festas populares. Bandos de ociosos à porta de cafés e de casas que vendem vinho e carvão, parecem discutir animadamente a razão das suas vidas, ou talvez apenas, a derradeira intriga ou boato que aqui alastra como fogo em palha seca. Já quando estivera em Goa, tivera a oportunidade de me inteirar da apetência que uma certa camada urbana tinha por historietas mirabolantes, geralmente desprovidas de qualquer veracidade, mas capazes de alimentar todo o tipo de sentimentos, desde o ódio mais feroz e irracional, até à compaixão que implica a lógica beatitude da criatura alvo da conversa. E o mais interessante, consiste no curioso facto de um beneficiado pelas palavras de louvor, ser no próprio dia e devido a um outro boato, passar a ser arrastado até às portas do inferno, onde, claro está, existem sempre uns pobres diabos capazes de unicamente se exprimir no calão mais grosseiro de que esta rica língua é capaz.
Muito a propósito, decidi entrar num café situado na Praça D. Pedro IV, local que como muitos outros possui duas denominações. Oficialmente, tem o nome do monarca luso-brasileiro, mas para o comum dos mortais, sempre foi e será o Rossio. Este café, o Gelo, é um local já meu conhecido apenas pelo nome, pois já há muito sabia que nas suas salas se tinham reunido os conspiradores republicanos que assassinaram o rei Carlos e o príncipe Luís Filipe. Discutia-se a alta voz e qualquer um podia escutar planos conspirativos, atoardas e o constante e impiedoso martelar de reputações. Dir-se-ia ser Portugal uma terra de milionários, pois os cafés encontram-se a abarrotar a qualquer hora do dia e fiquei a pensar com os meus botões, do que viverá toda esta gente que passa os seus dias diante de copos e garrafas? A cidade encontra-se razoavelmente limpa, nota-se uma certa prosperidade e os armazéns da zona do Chiado estão muito bem fornecidos de todas as novidades parisienses que parecem ser da preferência dos portugueses da capital. Tal como em Londres, Viena ou Paris, as equipagens rivalizam no luxo das carruagens abertas e as senhoras burguesas, geralmente acompanhadas por uma filha ou pela empregada, fazem a rotina diária das lojas, comprando mais um par de luvas ou um extravagante e emplumado chapéu para um hipotético grande dia de festa. Casas de chá mobiladas com esmero e nas quais podemos degustar deliciosas especialidades locais, oferecem o espectáculo da passagem de la mode parisiènne, tal como se verifica em qualquer outra cidade europeia. Lisboa possui várias estações de caminhos de ferro, de onde partem comboios para todas as regiões do país, existindo uma muito razoável cobertura da rede ferroviária que é moderna e segundo dizem, eficiente. O porto está praticamente sempre lotado de navios que dos confins do planeta, trazem das colónias os produtos destinados ao consumo interno e à exportação, adivinhando-se facilmente - se as condições políticas assim o permitirem - um futuro de progresso material que não deixará de beneficiar amplas camadas da população. O país é territorialmente pequeno, mas espantosamente, possui o terceiro maior Império colonial, exercendo a sua soberania sobre possessões banhadas por três oceanos e continentes. É certo que o facto de pertencer à sempre inconvenientemente considerada esfera de influência britânica, permite-lhe o luxo de exercer o domínio sobre territórios infinitamente mais valiosos que aqueles onde flutuam as bandeiras da Alemanha ou da Itália, por exemplo.
No café Gelo, discutiam-se animadamente as últimas novidade relativas ao mundo da política local e as responsabilidades sobre imaginárias desgraças recaíam alternada mas invariavelmente nas pessoas do rei Carlos ou Manuel, na rainha Amélia e claro está, nos padres, bem capazes, segundo esta gente, de todos os crimes que a mente mais retorcida pode imaginar. Seguros de verem em mim um estrangeiro disposto a escutá-los e que ainda por cima fala português, procuraram convencer-me acerca da justeza das suas ideias e projectos inconsistentes e recorrendo ao habitual argumento do Ultimatum, julgaram-me facilmente coagido pela timidez. Retorqui secamente que humilhação muito maior infligíramos à França em Fachoda, sem que por isso se pensasse seriamente derrubar o regime vigente naquele país. Mais acrescentei que isso provava a consistência de uma opinião pública que sabia distinguir o essencial daquilo que é perfeitamente negligenciável. Logo decorridos alguns minutos, pareceu-me que esta gente vive obcecada com sonhos de grandeza e com dogmas redentores de uma situação que afinal só se resolverá com persistência no trabalho, banco de escola, paz política e respeito pela hierarquia, coisa impossível de imaginar nestes ligeiros espíritos em teimosa efervescência. Poderia executar rapidamente um xeque-mate aos malcriados palradores, questionando-lhes acerca daquilo que consideram ser uma república, que tal como a Inglaterra, Portugal é e sempre foi. Creio que para os meus interlocutores, consiste num mero sucedâneo dos santinhos milagreiros que devotadamente adoravam na sua infância, esperando curas, alimentação farta e se possível, um bilhete premiado na lotaria. No fundo, para esta gente, a república é apenas um milagre, talvez tirado das profundezas de uma fé aparentemente renegada. Rapidamente cansado da colossal ignorância orgulhosamente assumida pelos revolucionários profissionais, decidi não perder mais tempo, pelo que polidamente me despedi, manifestando o interesse em ver o couraçado brasileiro S. Paulo que transporta o presidente Hermes da Fonseca que está de visita a este país. Maravilha técnica do engenho britânico, este navio e o seu irmão gémeo Minas Gerais, são decididamente peças essenciais na manutenção do status quo na sempre instável região do cone sul americano.
Descendo a Rua do Ouro - a oficialmente denominada Rua Áurea -, cheguei ao preciso local onde caíram varados pelas balas assassinas o rei Carlos e o seu herdeiro. As fachadas poente da magnífica Praça do Comércio - o Terreiro do Paço dos lisboetas eBlack Horse Square entre os meus compatriotas -, ostentam as indeléveis marcas da chacina, pois a cantaria foi fortemente atingida durante o tiroteio daquela tarde de inverno. Fiquei a pensar se a versão que corre, a de um acto isolado de dois assassinos, pode ser sustentada. Não foram apenas eles, tenho a certeza.
Bordejada por árvores que oferecem protecção ao inclemente sol, omnipresente durante mais de metade do ano, esta praça possui uma magnífica estátua ao rei José I e evidentemente, no seu pedestal podemos olhar para o rosto severo e decidido do marquês de Pombal, o hábil ministro que conduziu os trabalhos de reconstrução da cidade destruída pelo cataclismo de 1755. O comércio que aqui se pratica é bastante diferente daquele que vimos na Baixa, pois no Terreiro encontramos vendedores ambulantes e gente que vem dos arrabaldes da cidade para vender os seus produtos hortícolas e animais de capoeira. Os preços são razoáveis para a nossa bolsa, mas continuo a interrogar-me acerca da inextricável capacidade de tantos portugueses em permanecerem vivos e de boa saúde, dada a bem visível inércia e fare niente que salta aos olhos em praticamente todas as ruas da capital.
É uma interrogação que não deixarei de colocar esta noite aos meus convivas na embaixada.
3 de Outubro de 1910
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