Theo Boer, professor universitário de ética na Holanda, antigo membro de um dos 5 comités de análise dos pedidos de eutanásia, esteve há dias em Lisboa a convite da Universidade Católica para fazer uma conferência sobre a realidade da eutanásia no seu país.
De 2005 a 2014 analisou mais de 4000 dossiers de pedidos de eutanásia. Inicialmente achava que a eutanásia poderia aplicar-se apenas em situações excepcionais. A partir de 2010, com o disparar dos casos face ao registado no início da aprovação da lei em 2002, foi reconhecendo que o caracter de excepcionalidade estava a desaparecer e relatou-nos um caso que o marcou profundamente: o de uma senhora de 60 anos que, ao cegar, achou que o sofrimento daí resultante era intolerável e só poderia resolver-se com a eutanásia, o que efectivamente aconteceu. Abandonou os comités e é hoje uma voz crítica do movimento pró-eutanásia, denunciando a realidade da chamada “rampa deslizante” – casos aprovados muito para além das supostas indicações da lei – e alertando para os dramáticos riscos que a aprovação de leis deste tipo poderá ter noutros países.
É pois, uma voz qualificada, que conhece bem a realidade e que não devemos ignorar, quando queremos fazer, como é devido, um debate sério e democrático em torno da legalização da eutanásia.
Que nos disse Theo Boer de mais relevante?
Mostrou-nos como no início a promessa era da aplicação apenas a casos excepcionais, de sofrimento físico em fim de vida, e como a partir de 2010 e até hoje os casos dispararam estrondosamente – em 2017 ultrapassaram os 6500 casos reportados e há cerca de 20% de casos a mais não reportados, ou seja, há subnotificação –, nomeadamente em situações de demência, de doença mental e não necessariamente em doentes terminais. Hoje, os números oficiais revelam que se registam mais de 20 eutanásias por dia na Holanda.
Disse claramente que critérios que inicialmente pareciam ser restritivos se tornaram progressivamente mais subjectivos, que a eutanásia se banalizou e criou-se uma cultura em que ela é a solução para diferentes tipos de sofrimento. Sublinhou, aliás, que o simples facto de criar uma lei é um sinal e uma porta aberta para criar uma cultura permissiva a este respeito na sociedade. Aliás, alertou também que estão abertas as possibilidades de maior liberalização dos critérios na Holanda e alegar que se está cansado de viver ou que já se tem vidas completas poderá vir a ser aplicado como razão para invocar eutanásia em doentes com mais de 75 anos.
Vincou ainda que não se trata apenas de uma questão de despenalização do acto de matar alguém a pedido, como nos querem fazer crer. Estão em causa valores fundamentais, estão em causa formas de olhar, tratar e apoiar os mais vulneráveis e uma cultura permissiva – não restrictiva – que inexoravelmente determinará a forma como os nossos filhos e netos virão a morrer.
A falta de rigor e o enviesamento que os media em geral têm adoptado em várias partes do mundo no tratamento deste tema, tomando partido, apresentando casos de forma distorcida e romantizada, com eufemismos, ocultando factos graves, foi outra das preocupações apontada por Theo Boer. E aludiu também a uma certa intolerância que se vai instalando face aos que são contrários à eutanásia, numa tentativa de silenciamento dos opositores à lei, e que rapidamente passam a ser alvo de ataques de caracter, pessoalmente perseguidos e denegridos.
Importa dizer que, na análise que fez das propostas já entregues no parlamento português, Boer sublinhou que não garantem de forma alguma que a pessoa doente tenha que ser um doente terminal, desvalorizam a prévia relação médico-doente e admitem o sofrimento existencial como razão para aplicar eutanásia. Ou seja, permitem que sejam mortas a pedido pessoas muito tempo antes da sua morte natural e ainda que doentes do foro mental possam ser eutanasiados.
Os factos e a realidade da Holanda estão à vista de quem os quiser ver, não podem ser ocultados nem ignorados, e suportam claramente a inconveniência de fazer uma lei que permita a eutanásia, ainda mais uma lei na linha das propostas apresentadas no nosso país. Não basta argumentar que o medo dos resultados não nos deve inibir de fazer uma lei, e querer convencer alguém que no nosso país esta realidade trágica não ocorrerá.
Numa matéria literalmente de vida ou de morte, não há que correr riscos desta monta e os experimentalismos são perigosos e indesejáveis. Já percebemos que não há “boas leis” quando se trata de legalizar a morte a pedido do doente.
Neste debate sobre eutanásia, que se pretende, insisto, rigoroso e esclarecedor, não podemos ocultar a verdade. Façamos aqui eco dos apelos consistentes e responsáveis de Boer – olhem para a realidade holandesa, que não é irrelevante, e se é para tratar bem das questões do sofrimento em fim de vida, “não legalizem a eutanásia, não, não vão por aí”.
Oxalá.
Médica Cuidados Paliativos
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