1. Introdução. Para um debate esclarecido sobre a eventual legalização da eutanásia e do suicídio assistido, é imprescindível que os argumentos a favor da vida até à morte natural sejam conhecidos. Este texto é um resumo das principais razões éticas, jurídicas, religiosas, políticas, médicas e sociais contrárias à eutanásia e ao suicídio assistido, nas vésperas da votação, pela Assembleia da República, de quatro projectos-lei que propõem a sua introdução em Portugal.
2. Noção. Etimologicamente, eutanásia significa ‘boa morte’, mas conceptualmente é sinónimo de acção, ou omissão, em virtude da qual se provoca a morte de um doente em situação terminal, ou que padece de dores insuportáveis, a seu pedido ou com o seu consentimento, por razão da qualidade da sua vida. Pressupõe um grande sofrimento, não susceptível de cura, bem como a vontade do próprio em pôr termo à sua existência e, por parte de quem realiza essa acção, ou ajuda, uma atitude de compaixão pelo paciente que pede a eutanásia, ou o auxílio de que carece para pôr fim à vida e, consequentemente, à sua dolorosa situação.
3. A questão ética. Não obstante a vontade do próprio, que distingue a eutanásia do mero assassinato, e a boa intenção de quem lhe causa a morte, a eutanásia, ou suicídio assistido é, eticamente, um homicídio, na medida em que é matar intencionalmente uma pessoa sem culpa. Portanto, em termos éticos, a eutanásia significa uma licença para matar pessoas inocentes, a seu pedido e por uma razão alegadamente humanitária.
Não obstante o primado da liberdade, a vontade própria não é relevante em relação a certos crimes: um assassinato, consentido pela vítima, não é menos grave do que o executado contra a sua vontade. Ou seja, a autonomia da vontade individual não prevalece contra a dignidade humana, nem pode ser justificativa de uma acção eticamente condenável, como é sempre matar um ser humano sem culpa. A intenção altruísta do sujeito que pratica a eutanásia, ou é cúmplice do suicídio assistido, também não legitima, em termos éticos, a acção de matar um ser humano inocente.
4. A questão religiosa. As principais religiões, como a judaica, a cristã e a muçulmana, são contra a eutanásia e o suicídio assistido, porque o quarto mandamento da lei de Deus proíbe matar. “Nós, comunidades religiosas presentes em Portugal, acreditamos que a vida humana é inviolável até à morte natural e perfilhamos um modelo compassivo de sociedade e, por estas razões, em nome da humanidade e do futuro da comunidade humana, causa da religião, nos sentimos chamados a intervir no presente debate sobre a morte assistida, manifestando a nossa oposição à sua legalização em qualquer das suas formas, seja o suicídio assistido, seja a eutanásia” (Declaração conjunta das comunidades Islâmica, Israelita, Budista, Hindu e Bahá’í, das Igrejas Adventista, Ortodoxa e Católica, a Aliança Evangélica e o Conselho Português de Igrejas Cristãs, Maio de 2018).
Mesmo não sendo uma questão essencialmente religiosa, mas ética, o parlamento não pode ignorar que a grande maioria dos cidadãos portugueses se revê numa destas religiões e, por isso, sentir-se-ia ofendida na sua liberdade religiosa se porventura o Estado permitisse uma prática que a sua respectiva crença considera gravemente criminosa e contrária às mais elementares regras de uma sã convivência social. O Estado português é laico mas a sociedade portuguesa é, na sua grande maioria, religiosa: compete aos órgãos de soberania respeitar as crenças maioritárias do povo português.
5. A questão jurídica. A Constituição da República Portuguesa declara que a vida humana é inviolável e, portanto, a eutanásia e o suicídio assistido são inconstitucionais. Por sua vez, nenhuma lei ordinária pode prescrever, ou tolerar, comportamentos que directamente violam uma norma constitucional.
A eutanásia e o suicídio assistido não podem ser equiparados à interrupção voluntária da gravidez, ou aborto provocado, porque o ordenamento jurídico português não reconhece ao nascituro a inviolabilidade que, pelo contrário, consagra em relação a todos os seres humanos nascidos com vida. Portanto, a eutanásia e o suicídio assistido só poderão ser legalizados depois de efectuada uma revisão constitucional que revogue o princípio da inviolabilidade da vida humana.
A eutanásia, com esta designação, não está criminalizada em Portugal, mas sim o “homicídio a pedido da vítima”: “quem matar outra pessoa determinado por pedido sério, instante e expresso que ela lhe tenha feito, é punido com pena de prisão até três anos” (art. 134º, 1). Atente-se à terminologia empregue pelo Código Penal: trata-se de um “homicídio”, porque é “matar outra pessoa”. Portanto, em termos jurídicos, despenalizar a eutanásia mais não é do que legalizar um homicídio específico. Por sua vez, a despenalização do suicídio assistido contraria o dever moral e jurídico de socorrer quem se encontra em perigo de vida.
6. A questão política. A Assembleia da República não goza de legitimidade para decidir uma questão que respeita à consciência de todos e cada um dos cidadãos. Os partidos políticos nela representados também não estão facultados para exprimirem a vontade dos respectivos eleitorados sobre este particular, na medida em que a legalização da eutanásia e do suicídio assistido não constam dos seus programas eleitorais.
Quanto muito, o parlamento poderia suscitar um referendo nacional sobre esta matéria, muito embora os direitos humanos, bem como as liberdades e garantias fundamentais, não devam ser sujeitos a consultas plebiscitárias.
Quanto muito, o parlamento poderia suscitar um referendo nacional sobre esta matéria, muito embora os direitos humanos, bem como as liberdades e garantias fundamentais, não devam ser sujeitos a consultas plebiscitárias.
7. A questão clínica. A acção de tirar a vida a alguém, mesmo que a seu pedido e em grande sofrimento, não pode ser equiparada a um acto médico e viola gravemente o estatuto deontológico a que estão obrigados todos os médicos, bem como os demais profissionais da saúde. Segundo o juramento de Hipócrates, nenhum clínico pode intencionalmente pôr termo à vida de um paciente. Por outro lado, quem se encontra num estado muito doloroso ou terminal, pode já não estar em condições de prestar um consentimento válido. Esta situação é tanto mais grave quanto é certo que, pelo seu grande sofrimento, o paciente pode erradamente supor que só a morte o pode libertar da dor, ignorando a existência das práticas clínicas que, nomeadamente através dos cuidados paliativos, lhe podem facultar um fim de vida sem excessivo sofrimento.
Não é por acaso que o actual bastonário da Ordem dos Médicos em Portugal, eleito democraticamente por todos os médicos portugueses, bem como todos os seus antecessores ainda vivos, se manifestaram publicamente contra a eutanásia e o suicídio assistido, em carta dirigida ao Presidente da República. Os médicos não podem ser, ao mesmo tempo, os curadores da vida dos pacientes e os causadores da sua morte intencional. Nos países em que alguns médicos aceitaram praticar a eutanásia, quebrou-se a confiança institucional que é essencial à prática da profissão.
8. A questão social. Muito embora a prática da eutanásia e do suicídio assistido seja, inicialmente, permitida apenas em situações muito extraordinárias, está comprovado, nos escassos países que legalizaram a eutanásia, que a introdução desta medida, em princípio excepcional, tende a generalizar-se em relação a doentes que a não pediram, ou outras pessoas tidas por indignas de viver, como as crianças com graves deficiências. Da mesma forma como o aborto foi também, ao início, legalizado apenas para casos de violação ou malformação do feto, e actualmente já é praticado livremente, dentro do prazo previsto na lei, sem necessidade de nenhuma causa justificativa, uma eventual lei que legalizasse a eutanásia e o suicídio assistido teria, previsivelmente, esse efeito, vulgarizando a morte provocada de doentes terminais, pessoas de idade, crianças e jovens deficientes, etc., sem o seu consentimento e até mesmo contra a sua vontade.
9. Eutanásia e bem comum. A prática da eutanásia corresponde a um entendimento totalitário do Estado, que desvaloriza o ser humano e, por isso, instiga a sua morte. A eutanásia foi muito praticada pelo nazismo, não apenas como expediente para a eliminação dos doentes terminais e deficientes, mas também de muitos inimigos do regime, como judeus, católicos, homossexuais, ciganos, etc. Na realidade, trata-se de uma medida legislativa que ‘coisifica’ a pessoa: uma vez destituída da sua originária e inviolável dignidade, passa a ser, para o Estado, um sujeito descartável. Num país em que a eutanásia estiver institucionalizada e for prática corrente do serviço nacional de saúde, só os indivíduos mais capazes, em termos económicos e financeiros, a podem evitar, quer recorrendo a clínicas privadas, quer emigrando para países onde uma tal prática não seja permitida.
É verdade que, mesmo quando os cuidados paliativos logram proporcionar a um doente terminal uma vida aceitável, porque digna sê-lo-á sempre, não é possível excluir, da existência humana, todos os sofrimentos. Mas também é certo que a solução para a dor não é nunca a eliminação do paciente, mas a sua cura, ou aqueles cuidados médicos que permitam atenuar esses sofrimentos físicos ou psíquicos. A eutanásia, se legalizada, será um expediente fácil para os familiares e profissionais da saúde se verem livres de parentes e pacientes que, de outra forma, exigiriam os seus cuidados. Seria ingénuo pensar que, uma lei que autoriza matar seres inocentes, não será usada com intuitos criminosos.
10. Conclusão. Para a sociedade em geral é preferível que não se permita a morte provocada do doente terminal, ou incurável, nem se conceda uma discricionária licença para matar. Mesmo que, em alguns casos, essa lei pudesse ser aplicada segundo critérios humanitários que, contudo, nunca legitimariam uma tal acção, pior seria o dano social provocado por uma tal legislação. Em todos os países e regimes em que a eutanásia se praticou, como na Alemanha nazi, ou pratica, como na Bélgica e na Holanda, sempre foi e é origem e causa de irremediáveis abusos contra a vida e a dignidade humana, sobretudo dos que, por serem mais desfavorecidos, mais carecem também da protecção da lei e do Estado.
Post scriptum. Primeiro título da primeira página do Público de 24 de Maio: “Câmaras municipais abateram quase 12 mil cães e gatos num ano” e, em subtítulo, “Abate de animais pelos municípios cresceu 25% em 2017. Em Setembro passa a ser proibida a eutanásia (sic) nos canis como medida de controlo de cães e gatos vadios, mas Governo já admite adiar prazo”. Fica explicada a razão pela qual o PAN foi o único partido que, no seu programa eleitoral, propôs a eutanásia: nada melhor do que o ‘abate’ dos seres humanos para evitar a ‘eutanásia’ dos animais. Moral da história: se não quiser ser abatido nalgum matadouro municipal – leia-se hospital do Serviço Nacional de Saúde – use uma pulseira com a seguinte inscrição: ‘Atenção: matar seres humanos inocentes é legal, mas matar animais é crime! Sou um cão que fez uma operação de mudança de espécie. Se me quiserem eutanasiar, eu mordo’.
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