Magalhães – um dos insignes navegadores de que há memória – continua a estar no centro da polémica. É que Magalhães, talvez sem ter noção disso, foi protagonista de uma façanha que, hoje, é alvo de disputa entre dois Estados soberanos, Portugal e Espanha. E aqui, verdadeiramente, encontramos a sua importância. Nenhum Estado que abdicar de Magalhães e do feito que o viria a distinguir ao longo de todos estes séculos. E se entre os governos português e espanhol parece estar tudo solucionado, com a apresentação de uma candidatura conjunta da viagem na UNESCO, o mesmo não podemos dizer dos jornais e sítios de opinião espanhóis, que, quase no limite da paranóia, insistem em reivindicar Magalhães, em assomos nacionalistas que, devo dizer, só lamento por apenas se manifestarem do lado de lá da raia.
Em Portugal, temos uma concepção muito particular de como nos devemos comportar em determinadas circunstâncias. O politicamente correcto está instituidíssimo. Aquando da polémica com Magalhães, li notícias, crónicas, artigos deste e daquele. Todos, porém, comungavam da mesma linha, diplomática, racional – a ponto de inexpressiva -, distante. Realmente, se há característica que invejo nos espanhóis é a sua coragem. Até um pouco daquele chauvinismo e daquela soberba nos faz falta. Lá, têm-nos a mais; aqui, a menos. Magalhães, o nosso Magalhães, pouco significa para os opinadores e comentadores habituais. Quase que o oferecem de bandeja a nuestros hermanos. Levem-no. Sejam é menos ruidosos. É o que parece resultar de tanta apatia. Enveredam nas lendas da desnaturalização de Magalhães, sem que haja um único documento histórico que o ateste, senão escritos de autores da época, espanhóis, e que por isso deixam muito a desejar no que respeita à sua autenticidade. Para os espanhóis, não basta que Magalhães tenha servido a Carlos I; mais do que isso, querem-no apagar da História de Portugal, reivindicando-o como seu, como espanhol, porque o que está por detrás da pretensa desnaturalização de Magalhães é legitimar que se possa afirmar que Magalhães não era português, mas sim espanhol – o próprio conceito de Espanha, no século XVI, é discutível, porque, se bem que Castela e Aragão já estavam unificados, não havia qualquer Reino de España, que é muitíssimo posterior e remonta já à Casa de Bourbon. Espanha, naqueles tempos, ou as Espanhas, designava a península e o conjunto dos reinos que a compunham. Portugal, evidentemente, fazia parte. Não existia, todavia, qualquer teor político no termo Espanha. Espanha era a península, a herdeira da Hispania romana, ou seja, o território europeu a que hoje chamamos Península Ibérica.
Magalhães, nascido em território português, em localização imprecisa, que servira ao monarca português, Dom Manuel I, tendo-se, alegadamente, incompatibilizado com este – há o tal episódio do beija-mão, em que Dom Manuel I terá recusado deixar-se beijar por Magalhães, o que provavelmente é fantasia dos cronistas da época -, ofereceu os seus préstimos a Carlos I para descobrir o caminho para as ilhas Molucas. E é importante que façamos, aqui, um ponto de ordem: Magalhães não quis circum-navegar o planeta. Não se pensava nisso, e tão-pouco se tinha uma percepção nacional dos feitos – não havia nações. Os navegadores serviam um e outro monarca. As frotas incorporavam pessoas de várias proveniências. É natural que dêmos uso a termos actuais para nos referirmos a realidades passadas, por insuficiência de léxico mais apropriado, mas temos, a todo o momento, de nos colocar o mais possível no meio e no tempo em que aquelas personagens viveram. Magalhães julgou que chegaria às ilhas por um caminho diferente daquele que os portugueses seguiam, contornando a costa africana – e importa também que se diga que não éramos navegadores de costa, como tantas vezes se lê por aí, em tentativas de nos diminuir. Não chegámos à Terra Nova, no actual Canadá, pela costa, nem ao Brasil, nem a tantas ilhas remotas que colocámos no mapa do mundo (Tristão da Cunha, Santa Helena, Maurícias, etc), e nem eventualmente à Austrália. O nosso império era marítimo, costeiro, composto essencialmente por feitorias, com a salutar excepção do Brasil. Métodos diferentes dos seguidos pelos espanhóis, conquistadores. Apenas isso.
A suposta desnaturalização de Magalhães, mais do que não encontrar eco em qualquer documento histórico, porque não existe, não encontra entre cronistas relativamente contemporâneos a Magalhães. Dizia João de Barros (1476 – 1570), exímio historiador português, na Década III da Ásia, de 1563, o seguinte:
« Finalmete, auindos ambos (Magalhães e Faleiro) neste propósito de dárem algu desgosto a el Rey, deram consigo em Seuilha, leuando alguus pilotos tambe doentes desta sua infermidade: e lá achárã outros amorádos deste regno, com q fizeram corpo de sua abonaçã, por naquella cidade cõcorrer muyta gete deste mister do mar, por causa das armadas q se aly faziam pera ás Antilhas. » (Livro V, Cap. VIII)
Zero referências a desnaturalizações. Gaspar Correia (1492 – 1561), também ele historiador, relatou assim, nas suas Lendas da Índia, o episódio que dá conta da partida de Magalhães:
« Fernão de Magalhães d’ysto aggrauado, porque o muyto pedio a EIRey e elle o nom quis fazer, lhe pedio licença pera hir viuer com quem lhe fizesse mercê, em que alcançasse mais dita que com elle. EIRey lhe disse que fizesse o que quigesse; polo que lhe quis beijar a mão, que lhe ElRey nom quis dar. » (Tomo II, pág. 626)
Não há, uma vez mais, qualquer referência a desnaturalizações. Houve um arrufo, um desagrado, mas não mais do que isso. Tudo o que o negue radica, portanto, no desconhecimento, na negligência na consulta das fontes, ou, no mínimo, na má vontade. Repito: não há, a par de relatos de alguns autores, qualquer documento exarado por tabelião que ateste uma desnaturalização de Magalhães, pelo que não nos resta mais do que inferir o que a sensatez aconselha: Magalhães ter-se-á desentendido com o Rei, que ficou agastado, e foi servir a outro senhor, Carlos I. Não deixou de ser português e de provavelmente se sentir português. Mais ainda: Magalhães foi para Castela com autorização régia. Há quem venha defender que foi um espião português ao serviço de Dom Manuel. Eu não iria tão longe, mas, repito, não falta quem o defenda, e com argumentos melhores e mais plausíveis do que aqueles de que se munem os que alegam desnaturalizações, autores espanhóis como Antonio de Herrera, Bartolomeu Leonardo de Argensola, entre outros, incluindo Faria e Sousa, português, que todavia foi para Castela e adoptou o castelhano como idioma dos seus manuscritos. Até que ponto o fizeram já antevendo uma rivalidade futura, pois tudo é possível. Estamos no reino das suposições, sem documentos históricos, com apenas relatos de cronistas da época, que frequentemente hiperbolizavam os acontecimentos.
Magalhães, um português, com carreira feita em Portugal, levou para Castela a arte de navegar e a ciência que cá apreendera. Negar-se, ou omitir-se, a importância de Portugal na sua formação como navegador é manifestamente má vontade, e que Portugal está intimamente ligado à viagem de circum-navegação também. Magalhães era português, servisse que monarca servisse. Era-o. E foi ele quem iniciou a gesta, não a concluindo por um infortúnio subsequente. Dividir-se os louros da campanha de Magalhães (e Juan Sebastián Elcano) entre Portugal e Espanha parece-me a decisão mais sensata e mais respeitosa com aquilo que aconteceu entre 1519 e 1522. Ainda que admitindo que Dom Manuel procurou colocar entraves à viagem, tese que, aliás, não é consensual, nem isso retira da biografia de Magalhães – e que ele não negou – a sua origem. Se considerarmos, como alguns, que Magalhães efectuou o trajecto pelo Atlântico e pelo Índico a mando, de forma encapotada, como espião, de Dom Manuel I, para que o monarca português pudesse comprar as ilhas que, à época, se julgava estarem em hemisfério castelhano, mais se justifica colocar-se Portugal e Espanha lado a lado, como herdeiros da proeza de Magalhães. Nota ainda para o seguinte: Dom Manuel foi emprestando dinheiro a Carlos I, que se via em apuros, e a própria expedição às Molucas foi co-financiada pelo monarca português. Acredito que estes factos perturbem alguns espíritos mais orgulhosos e soberbos, particularmente em Espanha…
Os nossos vizinhos têm uma dificuldade tremenda em assumir que precisamos uns dos outros. Já era assim naqueles tempos. Espanha, ou Castela, como queiram, não ergueu o seu império sozinha. Nem Portugal. As informações, os navegadores, as influências cruzavam-se. Insistir-se que a viagem de circum-navegação, que não era para o ser, foi exclusivamente espanhola é um disparate que só o nacionalismo primário e irracional justifica. E o medo. É que há um claro aproveitamento político dos espanhóis. Não se pense que esta cegueira com Magalhães se explica apenas na história. Não. Magalhães, e isto até é o que mais me indigna, de certa forma, ou me entristece, melhor dizendo, está a ser usado para unir o que os independentismos têm ajudado a fragmentar. Os nacionalistas espanhóis precisam de um símbolo, algo que una as pessoas em torno de um propósito. Magalhães serve-lhes perfeitamente. Lembra-lhes do passado glorioso de Espanha, quase que o personificando. O Pacífico, mare nostrum espanhol, como propagam. Também o Índico foi, a seu tempo, um enorme lago português… As boas relações entre os Estados, que se querem frutuosas, pouco importam. Aborrece-me dizê-lo, mas valha-nos o bom senso aqui, que sempre acarreta uma dose de comedimento: não duvido de que houvesse quem estivesse disposto a começar quase uma guerra por Magalhães. Lá. Não por cá, que os portugueses, em moderação e ponderação, estão francamente à frente dos espanhóis. Assim o estivessem em amor-próprio e na hora de puxar pelos seus galões.
Marco Tiago Ferreira
Bibliografia:
– Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, N.ºs 16 e 17.
– MATOS E SILVA, José e António. 2009. Fernão de Magalhães: Um agente secreto ao serviço do Rei Dom Manuel de Portugal. Revista “Lusíada História” n.º 7 / 2010.
Fonte: Nova Portugalidade
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