A criação do Estado Moderno, não só esbateu a velha ordem social trifuncional - as três ordens do imaginário feudal do clero, da nobreza e do povo - como tendeu a absorver grupos sociais marginais, nacionalizando-os e conferindo-lhes grande protagonismo.
Ouve-se com frequência que no Antigo Regime, a nobreza confiscava a totalidade dos cargos de relevo, relegando os restantes estamentos para funções menores. Ora, assim sendo, por que razão se desenvolveu uma prática sistemática de discriminação positiva visando assegurar a certos grupos sociais relevância? Tal prática começou a definir-se no último quartel do século XVI quando, por determinação real, à nobreza foi vedado o acesso a alguns cargos em benefício do braço popular. Por exemplo, em 1572, Dom Sebastião determinava que "daqui em diante, haja na Câmara [de Lisboa] um presidente fidalgo e três vereadores que sejam meus desembargadores e sirvam os cargos que adiante vereis". Esses três vereadores todo-poderosos eram homens qualificados saídos do braço popular, cabendo ao presidente apenas funções de representação.
Por forma a evitar a discriminação de cristãos-novos - judeus convertidos ao catolicismo - estabelecia-se nesse mesmo ano que antigos judeus ocupassem funções na vereação camarária, decisão bem expressa no Regimento dos Oficiais Mecânicos da mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa. No regimento precisava-se que, para a eleição dos ourives e lapidadores (de pedras preciosas), o corpo eleitoral corporativo compor-se-ia de "seis cristãos-velhos e seis da nação dos cristãos-novos". Tal factor democrático acabou por se tornar extensivo à totalidade do território português, europeu como ultramarino, e em finais do século XVII, os factores origem social, origem étnica e "limpeza de sangue", se ainda fossem referidos, eram, de facto, menorizados pela invocação do mérito dos indivíduos. Em meados do século XVII, mercadores, banqueiros, mas igualmente um "estado do meio" - a classe média do Antigo Regime - ocupavam a parte de leão da administração, e nos concelhos os mestres de ofícios até aí considerados "vis" (sapateiros, curtidores, açougueiro, ferreiros) passaram a ter direito a ocupar lugares nas vereações camarárias.
MCB
Fonte: Nova Portugalidade
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