São essas as mentiras postas a correr, nas escolas, pela rua, nos espíritos menos atentos.
As histórias tremendas dos reis irancundos, cercados de concubinas e de um luxo roubado ao pouco que restava à subsistência do povo. Da tropa pronta a espezinhar quem ousasse reclamar o pão a que os filhos dos pobres tinham direito. E da Nobreza, que é como quem diz, da luxúria, da intriga e da depravação. Em tempos de centenário da nossa velha Ilda, tais são as intrujices que correm por aí, na blogosfera, nos jornais, em conferências de alguns insígnes "democratas".
Há pouco dei com este texto de Raul Brandão (in «Vale de Josafat», 1933), que não consta fosse esclavagista e expressa os desabafos do Autor com os seus próprios leitores. Ora vejam, senhores iluminado-republicanos e éticos:
«A vida modificou-se nos últimos vinte anos (...). Ninguém pensa hoje como ontem (...) Eu sou do tempo em que ser rico não era uma afronta para os pobres. (...) hoje só se é pobre com desespero. Na provincia que conheço, as palavras senhorio e fidalgo tinham quase a mesma significação. Muitos senhorios viviam com os caseiros e quase como eles. Estou a ver daqui as casas antigas que mal se distinguem das da lavoura - as mesmas pedras denegridas, as mesmas janelas sem vidros o mesmo lar enfumado, o mesmo celeiro escuro para guardar o pão.
As classes não estavam tão divididas. Hoje o rico desconhece o pobre (...). O que se acentua na vida actual é o egoísmo e a febre de gozar. (...)
Só uma directriz se marca cada vez mais fundo - enriquecer e gozar. Enriquecer seja como for e gastar à larga, venha de onde vier. (...)
Todos caminhamos com febre - a febre de quem não confia no dia de amanhã. O dia de amanhã talvez não exista; o que existe são as grandes oligarquias políticas, económicas e finaceiras; os grandes negócios, as grandes casas bancárias (...)
De resto, o exemplo vem de cima, vem das classes chamadas superiores, que enriqueceram sabe Deus como. (...)
Pede-se um governo, um plano, uma força - homens implorando aos manequins que os salvem! São os políticos muitas vezes que pregam contra o jogo no parlamento que vão à noite deitar os dados na roleta. (...) aquele médico de provincia pobre, e com uma família pobre, ganha hoje (1920) sessenta contos por ano como comissário do governo em qualquer banco. O filho deste republicano histórico fez uma fortuna nas colónias, de tal maneira escandalosa que não pode lá voltar. Apontam-se a dedo políticos que ganharam muitas centenas de contos com negócios de arroz e de açucar. (...)
Aqui há tempos, as galerias atiraram moedas de cobre sobre os deputados, gritando-lhes: - Parasitas! parasitas! (...)
Tenho uma certa pena, uma certa saudade do passado, mas caminho com decisão para o futuro. Tu e eu, leitor, reclamamos a hora tremenda do juizo final».
Estou a pensar em pedir ao Dr. António Reis e aos outros matemáticos do GOL que, de esquadro e compasso na mão, me dêem uma ajuda nestes meus cálculos. Sou fraco em contas, mas um texto publicado em 1933 com memórias de 20 anos antes, leva-nos no tempo até 1913... Não, não sou eu - quem se enganou foi Raul Brandão. Ou, quando muito, de 1913 para 2010 nada mudou. Cuidado, República - está para chegar a "hora tremenda do juizo final".
Fonte: Centenário da República
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