quinta-feira, 5 de julho de 2012

Venenos portugueses e sociedades secretas: desfazendo o mito da perna de frango no bolso da casaca


As matérias relacionadas com a história política só ganham plena inteligibilidade se encaradas numa perspectiva absolutamente policial. Tal como o criminalista deve possuir uma estrutura mental simétrica à do criminoso - os policias são, à sua maneira, os únicos criminosos tolerados pelo Estado - os analistas políticos agarrados à ficção do angelismo ou submetidos à piedosa crença da predominância das ideias na vida política, nunca compreenderão a verdadeira força que move os homens atraídos pelo poder. A actividade política obedece, não às ideias e às crenças, mas às forças cegas da rapacidade, da ambição predatória e do saque. A intriga, a destruição do adversário-concorrente, a absoluta falta de limites e regras no combate para atingir o poder ou garantir a sua posse, é isenta de qualquer escrúpulo . Não, há, pois, qualquer moral nem tão pouco regras, se bem que aqueles que à política se dediquem sejam os mais prolíferos arautos da moralidade. Quem diz política, deve ler também, o ofício de historiador.

Vem isto a propósito de uma pequena historieta, sempre em voga entre aqueles que se interessam pelas coisas da história contemporânea portuguesa, e que de tão repetida ficou. A historieta voltou à baila há três ou quatro anos - aquando do bicentenário da transferência da família real para o Brasil - e resume-se a parodiar, escarnecer, diminuir, ridicularizar ou desprezar a figura do então Príncipe Regente e futuro Dom João VI. A historieta é velha, cabendo a parte de leão a Oliveira Martins, que era homem de génio, mas também criatura venenosa que deixou centos de assassínios de reputação nas belas páginas do seu Portugal Contemporâneo. Pegando nos três maiores defeitos da alma portuguesa - a inveja, a mesquinhez, a ingratidão - Oliveira Martins, logo seguido dos Josés de Arriaga, dos Junqueiros e quejandos, pintou um retrato devastador de Dom João e da Princesa Carlota Joaquina. Da estupidez de um e do carácter de Messalina de outra não ficou, porém, qualquer prova documental. Não há, de Carlota Joaquina, uma só das famosas cartas pornográficas enviadas às irmãs, como de Dom João VI um só testemunho da sua imbecilidade. Pelo contrário, de todos os documentos e memórias a nós chegados - cito, arbitrariamente, o Copiador de Junot, as memórias da receptadora Laura Junot, os relatórios dos secretários de Estado da Marinha e Ultramar - transparece a imagem de um Príncipe Regente inteligente, diligente, trabalhador e informado. De Carlota Joaquina, a de uma mulher de armas, temível inimiga das maquinações das sociedades secretas (de cariz francês, como das de obediência britânica) e uma servidora da paz e da ordem.
Enquanto um e outro foram vivos, os inimigos da Coroa não conseguiram uma vitória. Havia, pois, que os eliminar. A Dom João VI eliminaram-no fisicamente, com o veneno. A Dona Carlota Joaquina, infamaram-na após a morte. Enquanto foram vivos, Dom Pedro e Dom Miguel - infelizmente deixados ao Deus dará e de educação descurada - não foram usados pelos grupos que se guerreavam para fazer essa bela obra que foi o tão afamado liberalismo, o avô da bagunça de hoje.

Voltemos à historieta. Compreendo, agora, sem caricatura e sem "ideias", a razão da imagem (certíssima) de um Dom João VI tirando coxas de frango do bolso da casaca. Dom João VI sabia bem que na sombra se movimentavam forças assassinas capazes das mais atrevidas iniciativas homicidas. Dom João VI e Dona Carlota Joaquina viviam rodeados de traidores. Hoje, sabemos quem eram, que lhes pagava, a quem serviam. O tema é actualíssimo. Os jornais estão cheios de referências a essa curibecas. Assim, ele comia as coxas de frango porque temia ser envenenado. Tinha razão. Quando deixou de as transportar na sua casaca, morreu envenenado.

Miguel Castelo-Branco

Fonte: Combustões

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