Neste 2012
que se abeira do fim, caiu no esquecimento uma efeméride da maior relevância
cultural; nada menos que a primeira expressão de uma prosa doutrinal de
deliberado intuito patriótico, colocando no centro da acção o povo português,
protagonista de História. Coube a João de Barros (1496-1570) a formalização de
uma teoria da história centrada na iniciativa colectiva do povo
português.Esse primeiro patriota
português “era (…) homem de venerável presença, alvo de cor, olhos espertos e
nariz aquilino, barba comprida e toda branca, magro e não grande de corpo, na
prática ainda que grave era aprazível e de grande conversação”. Entrara ao
serviço príncipe Dom João (futuro D.
João III) como moço do Paço, exercendo funções de guarda-roupa. Ali frequentou a
escola palatina na “idade do jogo do pião”, recebendo primícias nas artes
liberais, nas ciências, no latim e no grego. Metódico, burocrata talhado para o serviço do Rei,
foi-lhe confiada a tesouraria da Casa da Índia, Mina e Ceuta, cargo que ocupou
com merecimento entre 1525 e 1528, ascendendo depois à alta burocracia
dirigente, sendo nomeado Feitor da Casa da Índia (1533), funções que exerceu
ininterruptamente ao longo de trinta e sete anos, até 1567. Em meados da década
de 30, recebeu duas capitanias no Maranhão (1535), empresa em que perderia dois
filhos e os cabedais, endividando-o para a vida. Pobre, honesto, dedicado, foi
um dedicado servidor do Estado, num tempo em que a tentação do enriquecimento
ilícito fazia razias, anunciando o desastre económico e financeiro de finais de
Quinhentos.
Da sua pena,
dedicado ao rei e publicado em 1522, um romance de cavalaria – Primeira parte da
cronica do Imperador Clarimundo – a que se seguiu Ropicapnefma (1532), colóquio
metafórico em que intervêm o Entendimento e a Vontade e, em 1533, quiçá
aspirando ao cargo de cronista do reino, o Panegírico de Dom João
III. Em momento de profundas
alterações, consequência das reformas Protestante e Católica – a Inquisição foi
instituída em Portugal em 1536- a atividade do letrado prosseguiu, espraiando-se
por mercadoria espiritual, constituída pelas “artes de aprender a ler” e
cartilhas – Gramatica da língua portuguesa (1540); Cartinha com preceitos e
mandamentos da santa madre igreja (1540); Dialogo da viciosa vergonha
(1540).
Não sendo
cronista geral do reino, escrevendo “não por ofício, mas por inclinação; não por
prémio, mas de graça e, mais favorecendo que convidado”, entre os encargos
oficiais e os momentos de ócio, concebeu um grande plano que pretendia ser uma
história da conquista, da navegação e do comércio de Portugal na Europa, em
África, na Ásia e Terra de Vera Cruz (Brasil). Desta “catedral historiográfica”
inacabada, inscrevendo um arco cronológico que se inicia em 1420 com o início do
povoamento da Madeira e termina em 1549, surgiriam as três décadas publicadas em
vida de Barros (Primeira Década, editada por Germão Galharde em 1552; a Segunda
Década, também de Galharde, em 1553; a Terceira Década, editada em 1563 por João
de Barreira; a Quarta Década, seria completada por João Baptista Lavanha em
inícios do século XVII).
Inspiradas
em Tito Lívio, as Décadas dão expressão eloquente à novel historiografia
ultramarina, género discursivo que herdava, sintetizava e transpunha as crónicas
reais, as histórias eclesiásticas e histórias de cavaleiros de finais da Idade
Média, pretendendo-se monumento apologético inculcador de orgulho, consciência
de missão histórica e fonte de exemplo. Não se trata, contrariando Hernâni Cidade, de prosa
delirante. Barros teve acesso directo às fontes e aos actores principais e
secundários da história que quis salvar do esquecimento, foi fiel a um princípio
de ordem e equilíbrio, defendendo-se do exagero, procurando o rigor, condições
do labor historiográfico. Valeu-se de recursos estilísticos e de modelos
próprios do Renascimento, bem da riqueza e subtilezas da língua portuguesa,
então já preparada para voos literários, preferindo os grandes acontecimentos
aos pequenos factos. Os grandes protagonistas das Décadas são o Infante dom
Henrique e Dom João II, pródromos da expansão, assim como Dom Manuel I, Dom
Francisco de Almeida, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e outros
capitães-mores das armadas. Contudo, colocando o povo português - motor do tempo
novo – no centro da narrativa, Barros criou uma vibrante narrativa patriótica.
Transpostas Colunas de Hércules, tornando o desconhecido conhecido, os
portugueses haviam feito do mundo o palco de proezas que emulavam as dos heróis
clássicos.
Não será
necessário acentuar a influência de Barros em Camões e lembrar o sucesso que as
Décadas conheceram na Europa. De Afonso Ulloa, L’Asia del S. Giovanni di
Barros – tradução das Décadas primeira e segunda – editada em Veneza em
1562. Na terceira edição de Delle navigationi et viaggi, de Ramusio
(1563), surgem extractos, novíssima revelação de outros mundos e modos
insuspeitos. O interesse concitado prolongar-se-ia pelos séculos seguintes, e
ainda em inícios do século XVIII, enriquecidos pelo esmero editorial de Pieter
van der Aa, Expedições Navais (Scheeps-togt), quadros das viagens dos
capitães do Oriente retirados de João de Barros e adornadas por gravuras que são
desde então inseparáveis da visão europeia do sub-continente indiano e da
Insulíndia.
Mas para quê falar de coisas de somenos. O importante são as lamúrias, a choraminguice, a rediscussão da dívida, o Professor Doutor Artur Baptista da Silva, as indignações, os ataques à Isabel Jonet, a crise no Sporting, os insultos ao Primeiro-Ministro; isso, sim, são coisas importantes.~
Mas para quê falar de coisas de somenos. O importante são as lamúrias, a choraminguice, a rediscussão da dívida, o Professor Doutor Artur Baptista da Silva, as indignações, os ataques à Isabel Jonet, a crise no Sporting, os insultos ao Primeiro-Ministro; isso, sim, são coisas importantes.~
Miguel Castelo-Branco
Fonte: Combustões
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