Há quem pretenda a desculpabilização de Judas, que não teria sido o mau da fita, mas um instrumento da providência divina, o executante de uma inevitabilidade histórica
São Judas Tadeu, um dos doze apóstolos de Jesus, muito tem sofrido, desde há dois mil anos, à conta da homonomia com o infame Iscariotes, o Judas que traiu Jesus com um beijo. Com efeito, quem se atreve a rezar ao Tadeu se, afinal de contas, é um Judas?! Mais vale ir pelo seguro e recorrer a algum santo menos ambíguo e, se possível, de nome arrevesado – como Santa Agatónica, São Guilhebaldo ou São Zoilo – porque, sendo menos solicitados, é de supor que sejam mais solícitos do que os bem-aventurados de grande nomeada, sempre assoberbados por inúmeras petições.
Se é verdade que o Judas bom muito tem padecido por causa do Judas mau (aonde é que eu já ouvi isto do bom e do mau?!), também é certo que, de alguns anos a esta parte, têm-se feito grandes esforços para reabilitar o Iscariotes. Se não, vejamos.
Por um lado, ele era um dos doze apóstolos escolhidos por Cristo. Não sendo crível que o divino Mestre se enganasse na escolha, um tal chamamento parece garantir, a priori, o seu bom desempenho.
Jesus disse, pelo menos três vezes, que iria ser crucificado, depois de traído por um dos seus mais próximos discípulos. Se o Iscariotes foi o instrumento para a concretização desse plano divino, vendendo o seu Mestre por trinta dinheiros, poderá ser responsabilizado por isso?! Poder-se-á condenar alguém por ter realizado um desígnio providencial?!
Por último, os Evangelhos narram o suicídio do Iscariotes, que parece manifestar algum arrependimento pela sua colaboração na paixão e morte de Jesus. Portanto, não seria tão mau como o pintam …
Há até quem atribua a Judas uma boa intenção, se a sua acção tivesse sido apenas um meio para precipitar a manifestação gloriosa do Messias, que o Iscariotes e os outros apóstolos impacientemente esperavam e na qual Cristo não parecia muito interessado. Quem sabe se Jesus – pensaria ele – posto entre a espada e a parede, não apelaria aos seus poderes divinos, tantas vezes evidenciados nos seus milagres, e instauraria, por fim, o tão desejado reino messiânico?!
Resulta assim a desculpabilização de Judas Iscariotes que, afinal, não teria sido o mau da fita, mas apenas um instrumento da providência divina, o executante, entre outros, de uma inevitabilidade histórica. Alguém teria que fazer aquele papel e, por azar, foi a Judas que coube aquela tarefa ingrata, embora ele, por si próprio, não fosse pior do que os outros apóstolos, que a Igreja venera sobre os altares.
É verdade que a vocação do Iscariotes não foi menos sobrenatural do que a de qualquer outro dos doze, mas a sua infidelidade não decorreu de um erro de casting de quem o escolheu. Também é certo que ele colaborou na realização da profecia da paixão e morte de Jesus Cristo, mas a sua participação não foi inocente, mas consciente e voluntária. Mesmo que, depois de ter comprovado o terrível resultado da sua deslealdade, tenha posto termo à sua vida, nada permite crer que tal gesto tenha brotado de uma verdadeira contrição, como foram, pelo contrário, as lágrimas de Pedro, depois de consumada a sua tripla negação, mas de desesperação, que acrescenta uma nova culpa à culpa da traição.
Com Cristo foram crucificados dois ladrões: um mau e um bom (outra vez a mesma história!), a quem Jesus prometeu, naquele mesmo dia, a glória do céu. A salvação, in extremis, deste último, que a Igreja venera como santo, não converte em boas as suas anteriores acções, pelas quais o próprio se considerava merecedor da morte. Outra coisa seria cair no relativismo e afirmar que não há actos bons nem maus em si mesmos. É evidente que uma moral tão amoral seria arbitrária, porque poder-se-ia sempre invocar, para legitimar qualquer acção, boas intenções, contrárias à sua objectiva maldade. O mal, feito por bem, seria bom e, portanto, a moralidade da acção dependeria sobretudo do sujeito e das circunstâncias, em vez do seu próprio objecto.
Não é inocente a devoção a “São” Judas Iscariotes: a ética relativista tudo reduz à ambiguidade do propósito do sujeito e, neste sentido, até a traição de Judas se justificaria. Pelo contrário, a moral cristã está fundada na lei de Deus, que Cristo não veio abolir, nem alterar, mas dar pleno cumprimento, na expressão misericordiosa do mandamento novo do seu amor.
Jesus disse, de Judas Iscariotes, que mais lhe valia não ter nascido, o que parece indiciar a sua condenação. É possível, como possível teria sido a sua salvação, até ao último instante da sua vida, pela graça da paixão, morte e ressurreição de Cristo. E, já agora, de uma especial intervenção do seu homónimo Tadeu, que não em vão é o intercessor das causas impossíveis. Feliz Páscoa!
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Fonte: Povo
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