Por regra, as notícias sobre padres são, 99,9% das vezes, negativas: se não é um escândalo de natureza sexual, é um sacerdote que se casou, ou que tem um filho, ou que foi apanhado em alguma falcatrua. Mas 99, 9% dos sacerdotes não cometem nenhum escândalo de natureza sexual, não casam, não têm filhos, nem fazem falcatruas. Por isso, não são notícia. E, por isso mesmo, faltava um livro que, como ‘Nós os padres, 11 padres confessam-se’ (Aletheia Editores), desse notícia dos padres que não são notícia, para contrapor às notícias dos padres que o são, pelas piores razões, nas manchetes dos jornais, nos noticiários das rádios e das televisões.
Alguém dizia que todos os espanhóis andam atrás dos padres: uns com uma vela, outros com um pau. Talvez entre nós, graças aos nossos brandos costumes, não haja tanta beatice, nem tanto ódio. Mas é verdade que, quando se trata da Igreja católica e dos seus ministros, vêm ao de cima muitos preconceitos anticlericais, que alguma da nossa imprensa, geralmente alinhada com o pensamento anticatólico, seja ele ateu ou simplesmente agnóstico, gosta de alimentar.
É conhecida a máxima daquele furioso anticlerical que se propunha enforcar o último sacerdote, com as tripas do último bispo! Não haverá muitos assim, mas abundam os que têm do padre uma imagem soturna: uma espécie de figura pré-histórica, relíquia da era das trevas e da ignorância, que as luzes da ciência e do progresso um dia irão desmascarar. Na melhor das hipóteses, o padre católico é um sujeito anacrónico, uma espécie de dinossauro em vias de extinção, um parasita social que, não só não produz qualquer riqueza, como explora a crendice dos mais incultos. Mas, será mesmo assim?!
Para responder a esta pergunta, em boa hora a Aletheia decidiu “confessar” onze presbíteros portugueses, reunindo os seus testemunhos num livro agora editado e que, no próximo dia 27, vai ser apresentado por três mulheres: Aline Gallasch Hall de Beuvink, vice-presidente do Partido Popular Monárquico; Laurinda Alves, jornalista e cronista do Observador; e Margarida Neto, médica.
Muito embora o teor das confissões sacramentais esteja severamente interdito pelo correspondente sigilo e a sua violação seja punida com a pena de excomunhão automática, cuja absolvição está reservada ao Papa, a Aletheia atreveu-se a publicar as confissões destes padres.
No prefácio, D. António Couto, bispo de Lamego, chama a atenção para o inesperado resultado desta confissão colectiva: “Será sobretudo interessante e surpreendente, de modo particular para quem tem a ideia feita de que os padres são cinzentos e monótonos, feitos de renúncias e sacrifícios vários, verificar que palpita nestes onze retratos, não apenas uma vida igual a tantas outras, mas também uma alegria nova, um amor novo, um grande abraço à vida”.
A equipa dos onze entrevistados talvez não seja, apesar da coincidência numérica, uma selecção nacional, mas é uma expressiva amostra da realidade sacerdotal portuguesa. Os ‘confessados’ não só são de várias idades, entre os 28 e os 76 anos, como também de diversas proveniências sociais e eclesiais: predominam, como é lógico, os padres diocesanos, nomeadamente do patriarcado de Lisboa e das dioceses do Algarve, Coimbra e Lamego, em representação do sul, centro e norte do país, respectivamente. Também constam os testemunhos de outros sacerdotes seculares, como um presbítero do Caminho Neocatecumenal e um padre da prelatura do Opus Dei. Os restantes, são religiosos: dois jesuítas, um frade dominicano e um missionário claretiano.
Por opção da editora, em vez de uma entrevista personalizada a cada um destes presbíteros, todos responderam, com total liberdade, ao mesmo questionário que, diga-se de passagem, não só aborda temas institucionais, como também questões do foro pessoal. Com efeito, para além de uma breve descrição do seu percurso vocacional, foi-lhes pedido que confessassem as suas crises de identidade, as suas alegrias e tristezas, as suas zangas e frustrações, os seus hobbyse amores …
Curiosamente todos, de uma forma ou outra, confessaram a sua felicidade. “Sim, estes homens que não podem casar, nem constituir família, que têm que obedecer a um superior que nem sempre os compreende e que por vezes os obriga a um trabalho que não desejam, ou os retira de uma actividade que os entusiasmava, que vivem uma habitual escassez de recursos e que, por regra, não se podem permitir nem sequer as remediadas comodidades que os seus irmãos e antigos colegas de liceu, de faculdade ou de anterior profissão se permitem, transmitem, em geral, uma estranha felicidade, que mais entranha o mistério da sua surpreendente condição” – escreve-se no posfácio.
Não se pense, contudo, que são seres do outro mundo, porque todos, sem excepção, são cientes das suas limitações e, por isso, para além de confessores, são também penitentes. À indiscreta pergunta “Confessa-se com regularidade?”, todos responderam afirmativamente, alguns confessando que o fazem todas as semanas. Talvez seja este o segredo da sua alegria, do seu ânimo sempre renovado e da sua perseverança no serviço desgastante das almas, tantas vezes não retribuído, nem reconhecido.
A um insidioso pedido – “comente: ‘o traje não faz o monge’” – os onze, de uma forma ou outra, apontam a necessidade de um testemunho externo da condição sacerdotal. São os mais novos que são mais explícitos na afirmação dessa conveniência, que a geração anterior não levava tão a peito. De facto, enquanto o clero diocesano de mais idade geralmente traja à civil, os padres novos, nomeadamente no patriarcado de Lisboa, preza mais o hábito eclesiástico, que veste sem medo, nem vã ostentação.
Talvez esta amostra seja insuficiente para traçar o perfil do padre português do século XXI, não obstante a diversidade dos testemunhos recolhidos e, em boa hora, editados. Mas o que agora se torna público é suficiente para poder concluir que os padres são como as comadres: quando se confessam, sabem-se as verdades.
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