Nota: a descrição que se segue da batalha é inteiramente baseada na reconstituição feita pelo Professor Miguel Gomes Martins, na sua obra "De Ourique a Aljubarrota: A Guerra na Idade Média", à qual acrescentamos apenas algumas notas e menções.
A batalha
Terá sido então nos arredores de Ourique, no Baixo Alentejo, que os dois exércitos se defrontaram no dia de Santiago, protetor dos exércitos da Reconquista. O enfrentamento deu-se apenas por vontade mutua, - sendo que as batalhas eram nesta altura raras e evitadas a todo o custo pelo risco que acarretavam- Ibn Umar saíra ao encalço de D. Afonso Henriques e dos portucalenses para os desbaratar e pôr fim às suas pilhagens, fora no Baixo Alentejo que interceptara os cristãos que já se iam deslocando de novo para norte. Afonso Henriques, que pela inferioridade numérica e por se encontrar no coração de território inimigo tinha todas as razões para se furtar ao confronto, não quer abdicar dos seus espólios de guerra e regressar de mãos vazias a Coimbra, além do mais a retirada seria perigosa e difícil com o exército inimigo sempre no seu encalce a fustigar-lhe a retaguarda, podendo até cortar-lhe a linha de marcha e obrigá-lo a combater de qualquer das maneiras. O jovem príncipe decide então arriscar tudo e aceitar o desafio.
Os exércitos não se hão defrontado de imediato tendo adiado naturalmente o confronto, uma vez que ambos os lados necessitavam de descansar e de se alimentar antes da batalha. Os arraiais terão estado montados a umas centenas de metros de distância, separados pelo terreno onde se daria o confronto. Segundo os “Annales D.Alfonsi” o acampamento estaria montado num ponto alto defendido por um fosso, provavelmente também terão sido erguidas paliçadas e outras defesas para melhor proteger o acampamento do inimigo que se encontrava ali tão perto, e que potencialmente terá aplicado as mesmas medidas.
O dia 24 terá então sido preenchido com o levantamento das defesas e com a preparação para o combate que se avizinhava. Os combatentes terão cuidado do seu armamento, os cavaleiros tratado das suas montadas e todos tentaram descansar e alimentar-se, o que podia ser bastante difícil devido aos nervos que naturalmente antecedem um batalha. Inúmeras preces ter-se-ão elevado aos céus, de um lado e do outro, os soldados procuraram também cuidar da sua alma através da oração e confissão (para os cristãos).
À alvorada do dia 25 de Julho, após uma última refeição e missa campal, os soldados portucalenses acorreram ao campo dispondo-se em formação de batalha. O exército cristão dividia-se então em três unidades táticas: a vanguarda composta talvez pelos 300 melhores e mais bem armados cavaleiros da hoste, que supomos, divididos em duas ou três linhas, juntamente com algumas centenas de peões que no máximo sumariam 500 homens; a retaguarda seria idêntica em composição e dimensão à vanguarda; nos flancos estariam as alas que se prolongariam à esquerda e à direita da vanguarda, cada uma destas alas era formada por, supomos, 200 cavaleiros e algumas centenas de peões que mais uma vez atingiriam um número máximo de 500 homens, todos estes combatentes tinham a missão de impedir que as forças inimigas flanqueassem e envolvessem a hoste cristã.
Quanto ao comando, a Crónica de Portugal de 1419 afirma que D. Afonso Henriques teria comandado em pessoa a vanguarda, o professor Miguel Martins chama à atenção para o facto de tal poder não passar de um artificio literário para exaltar o fundador, e que este estaria antes na retaguarda (onde os riscos não eram tão elevados) de onde poderia comandar a hoste, por isso cabia ao alferes-mor Garcia Mendes de Sousa liderar a vanguarda. Apesar desta hipótese ser bastante válida e verosímil fará também sentido considerar que de facto o príncipe liderou em pessoa a vanguarda e a carga portuguesa pelos seguintes motivos: Afonso Henriques era então um jovem ambicioso de 30 anos que procurava ganhar uma crescente autonomia política, desde de São Mamede reclamava a liderança da nobreza de Entre Douro e Minho; estava potencialmente perante o seu maior desafio militar até então, era altura de demonstrar a sua bravura e valor guerreiro liderando os seus homens da linha da frente como faziam outros líderes militares. Relembremos, pois, o exemplo do próprio filho de D. Afonso Henriques, D. Sancho, que em condições relativamente parecidas no famoso fossado de Triana “agia como se tudo dependesse do seu desempenho, como se tivesse de provar toda a sua valia naquele momento face aos homens que liderava”[1]; o poder de liderar outros homens advinha das capacidades de liderança e bravura demonstrados em campo de batalha, é por isso que D. Sancho lidera em 1178 a vanguarda portuguesa, talvez em semelhança do seu pai em Ourique quando ainda era apenas um jovem conde. Seguindo esta linha de raciocínio não nos parece descabido sugerir que Afonso Henriques tenha efetivamente liderado a vanguarda, enquanto o alferes-mor (um rico-homem mais velho e talvez mais experiente) comandava da retaguarda.
Face à hoste cristã encontrava-se o exército mouro muito mais numeroso mas sobre o qual as fontes pouco adiantam, seguindo uma vez mais a reconstrução do prof. Miguel Gomes Martins com base nas práticas da altura, supomos que este estivesse dividido em cinco ou seis unidades táticas, sendo estas a vanguarda, um corpo central, duas alas que que defenderiam os flancos do exército, a retaguarda e talvez uma reserva.
Alinhados frente a frente os exércitos terão certamente observando-se mutuamente esperando que o adversário desse um passo em falso, será de imaginar que na hoste muçulmana se terá levantado um enorme clamor de grandes tambores e trombetas à medida que as bandas montadas- características dos exércitos mouros- desfilavam frente aos seus companheiros. Seria nestes momentos que se fariam as últimas bençãos, que os comandantes se dirigiam aos seus combatentes com palavras de encorajamento, relembrando a justeza da sua causa e o valor daquela guerra, que era santa. Após as as ovações e preces a batalha deu início, as fontes são unânimes quanto à iniciativa ter partido dos almorávidas, estes terão muito provavelmente lançados os seus ginetes em manobras de torna fuy,- como era a prática habitual no mundo islâmico- ou seja, a cavalaria ligeira moura, armada com arcos e dardos terá cavalgado até próximo das forças cristãs assediando-as com projeteis; esta tática tinha o objetivo de desorganizar as forças cristãs e induzir em cargas desorganizadas que ameaçavam a coesão do exército. Podemos imaginar que não terão tido grande sucesso e a resposta portucalense não se fez esperar, D. Afonso Henriques lança então aquela que era a grande arma dos cristãos que imenso dano fazia aos mouros, tanto na Hispania e na Terra Santa, a cavalaria pesada.
Ao som de cornos de guerra (muito representados em iluminuras da época), de gritos e apelos a Santiago, os cavaleiros cristãos terão carregado- tendo talvez a coluna assumido uma forma pontiaguda de frente estreita e em profundidade- ganhando velocidade à medida que avançavam, o trote passava a galope, mas os cavaleiros não podiam quebrar a formação, um bom choque inicial era decisivo numa batalha. Terá provavelmente sido o caso, os mouros não aguentaram o ímpeto da carga dos cavaleiros de Ibn Errik que “montavam à brida”, equipados de cota de malha, “presos” ao cavalo pelos estribos e selas, empunhando a lança a direito (lance couchée) como arma de choque. Perante uma boa execução da carga, a “massa de ferro” cristã rompeu as formações inimigas embrenhando-se pelas linhas almorávidas deixando para trás de um rasto de cadáveres.
Esta carga ou vaga de cargas terá sido conseguida com grande eficácia e terá tido grande impacto na hoste inimiga, segundo os “Annales D.Alfonsi” a cavalaria terá feito recuar e dividido as forças do Islão, rasgando as linhas da vanguarda até à segunda linha do exército de Ibn Umar. Por esta altura a vanguarda portucalense perdia o ímpeto da carga inicial esbarrando-se contra as formações mais recuadas; cabia agora aproveitar ao máximo o break through e continuar a a empurrar as linhas inimigas, para tal terão avançado em vagas a cavalaria ligeira- na sua maioria das forças concelhias- a peonagem e contingentes das alas e até da retaguarda. Vaga a após vaga os exércitos ter-se-ão embrenhado na carnificina habitual das batalhas, milhares de homens digladiaram-se sob o sol quente do verão alentejano. Segundo a Crónica de 1419 a batalha terminou ao meio-dia ou já à tarde (como sugerem os “Annales”), as armas cristãs saíram vitoriosas. A superioridade do armamento terá facilitado o triunfo sobre os mouros que hão debandado perante as forças de Ibn Errik, deixando muitos mortos para trás e outros ainda por cair, enquanto retiravam de forma desorganizada à frente das forças cristãs. As baixas almorávidas foram pesadas, Miguel Gomes Martins adianta que terão rondado entre os 20 e 50 por cento das forças mouras, ou seja, 2000 a 5000 homens, entre os cristãos também terá havido várias baixas especialmente na vanguarda onde caiu o alferes Diogo Gonçalves de Cete.
Parece-nos que terá sido então no campo de Ourique, após estar consumada a vitória, que os companheiros de Afonso Henriques no furor da vitória decidiram aclamá-lo rei. Sobre os gritos de entusiasmo e ovações o jovem príncipe foi elevado sobre o seu escudo passando então a ser chamado por rei. Mais à frente havemos de analisar a questão da aclamação com muito mais cuidado.
Consumada a vitória as forças portucalenses ter-se-ão prolongado pelo campo de batalha recolhendo os espólios deixados para trás pelos seus inimigos. Desbaratada a hoste as forças cristãs puderam aproveitar para pilhar mais a região, mas as fontes sobre isso nada dizem, o vasto botim que hão conseguido e a vitória frente a Abu Muhammad Az-Zubayr ibn Umar já deveriam ser suficientes para retornar a Coimbra. A hoste terá demorado vários dias atrasada pelos espólios e pelos prisioneiros apeados que levavam para norte, sem terem, ao que tudo indica, conhecido resistência maior até chegarem a Coimbra, onde entraram vitoriosos certamente recebidos por um clima festivo. O príncipe que partira voltava agora rei, coberto de glória e riquezas.
Gonçalo Palmeira
Notas
[1] Maria João Branco, D.Sancho I, p.16
[2]Mário Jorge Barroca, Nova História Militar de Portugal Vol. 1, p.126
[1] Maria João Branco, D.Sancho I, p.16
[2]Mário Jorge Barroca, Nova História Militar de Portugal Vol. 1, p.126
Fonte: Nova Portugalidade
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