terça-feira, 17 de julho de 2018

Um povo valente que entregou os seus filhos ao mar profundo

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Já a investigar para um novo trabalho que sairá em 2020, haja tempo, saúde e condições, desta vez sobre as sociedades nascidas dos descobrimentos e da expansão, detenho-me no manuscrito do diário de bordo de um navio da frota portuguesa da segunda metade do século XVIII, a nau Nossa Senhora da Viagem. Contrariando os lugares-comuns do suposto improviso, “aventura” e atitude a-científica dos portugueses, ali está condensado e aplicado um saber profundo, meticulosamente anotado e exprimindo o grande conhecimento náutico acumulado ao longo de séculos de navegação: as latitudes e longitudes, os fenómenos meteorológicos e o regime dos ventos, as correntes, o avistamento de animais marinhos e aves, a identificação de outras embarcações, respectivos pavilhões e nomes, as condições sanitárias da tripulação, a gestão da água e alimentos, a descrição dos portos de aguada; tudo anotado de hora a hora pelo redactor do diário. Neste imenso e infatigável trabalho de notação, detenho-me no registo de acidentes ocorridos na longa viagem de quarenta e três dias, de Lisboa à São Salvador, realizada em meados de 1762.

“Domingo, 29 de Agosto de 1762. Ontem, pelas três horas da tarde morreu o marinheiro Manuel Moreira. É o quarto que tem morrido depois de sairmos de Lisboa (…)”.

Folheio o diário desde o dia da partida e, depois, o diário de torna-viagem, de Fevereiro de 1763 e verifico que numa mera viagem de rotina e policiamento da rota do Brasil morreram oito tripulantes. Multipliquemos por cem, duzentos, trezentos e por mil estes números e ali está, sem rodriguinhos piegas, o custo humano dessa grandiosa, temerária e teimosa empresa portuguesa ultramarina que se prolongou por séculos e tocou todos os cantos do planeta. Quanto sacrifício verteu este povo nos caminhos do mar que foi palco da nossa grandeza e sepulcro de tantos Manuéis Moreira, quanta coragem silenciosa de homens simples e esquecidos teve esta nação de acumular para que hoje 300 milhões, do Brasil a Timor, se exprimam na nossa língua. É evidente que para muitos, tudo aquilo foi em vão, que prefeririam que aqui neste canto escalvado do sudoeste europeu tivéssemos ficado, europeus de terceira, transidos de medo entre a meseta hispânica e o oceano tenebroso. Esses, sim, não compreendem, não respeitam nem amam Portugal.

Miguel Castelo-Branco

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