domingo, 3 de fevereiro de 2019

D.Carlos de Bragança, um retrato

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O retrato que nos é dado de D.Carlos é o de um príncipe amante das artes e dos prazeres mundanos, e com esta imagem a propaganda republicana teve o seu alvo predilecto. Os seus antecessores (D. Luís e, antes, D. Pedro V) não poderiam divergir mais no carácter: a imagem bela e lúgubre do “Esperançoso”, ao mesmo tempo frio e romântico, político tecnocrata construído a pulso, e cuja morte precoce criou no povo uma profunda devoção, contrastava com o irmão, D. Luís, homem bom e condescendente, que beneficiou de um longo e próspero reinado, ao qual, mesmo os mais insignes opositores, não deixavam de lhe revelar as virtudes, como alguém descreveu: “Reinou, não governou”.

Mas D. Carlos não beneficiaria de uma propaganda tão favorável. Inicia o reinado da forma mais violenta ao ser confrontado com o escândalo do ultimatum inglês e a revolta republicana no Porto a 1 de Janeiro de 1891. A questão dos tabacos e os adiamentos à Casa Real levam Afonso Costa a atacar o rei na Câmara dos Deputados (na sessão de 20 de Novembro de 1906): “Por muito menos crimes do que cometidos pelo Rei D. Carlos, rolou no cadafalso em França, a cabeça de Luís XVI”. Nem as palavras de Oliveira Martins auspiciando uma nova monarquia forte e restauradora da ordem podiam adivinhar a desordem que aí vinha.

Na essência, o monarca era o produto de uma cultura liberal, não era um religioso ultramontano, o seu catolicismo reduzia-se às formalidade monárquicas, aliás, a defesa dos liberais na união do Estado e da Igreja servia para manter o clero sob o controlo do Estado e, assim, impedir atitudes mais “reaccionárias” da parte da Igreja (como os próprios diziam). D. Carlos era um político de grande habilidade e um pragmático, modelo do monarca que bem podia estabelecer paralelo com o espírito reformista do seu primo Guilherme II, que se colocou à frente do movimento socialista alemão; ou Leopoldo da Bélgica, que procurou ir ao encontro das reivindicações do operariado; ou mesmo Francisco José, que promoveu na Áustria um movimento a favor do sufrágio universal.

Ainda que com algumas diferenças para com estes soberanos. D. Carlos não se via como um enviado do divino, como o Kaiser alemão, não gostava desse “regime de opereta”, segundo os testemunhos da época o rei ouvia mais do que falava, não era homem de impor a sua vontade, aceitando o poder e os limites de um rei constitucional; não tinha, tão-pouco, ensejos de grandiloquência, ou de megalomania. Era, sobretudo, um homem energético, amante do desporto, das artes e das ciências, como comprovam os seus estudos oceanográficos. Mesmo não sendo no sentido estrito um intelectual (talvez mais perto desse conceito ficasse D. Pedro V) era um homem culto.

Dava razão ao jornalista republicano Homem Cristo que analisava a antipatia que muitos sentiam para com o rei, antipatia que resultava “unicamente da forte personalidade que, desde príncipe real, D. Carlos revelara... A Lisboa silenciosa, arruaceira, indisciplinada, sentia, por instinto, no futuro reinante, um adversário. E bastava isso para que olhasse com natural antipatia o homem destinado a reprimir-lhe os abusos e a desordem.Mas tinha carácter. Não o insultariam impunemente. Não beijaria mão que o esbofeteasse. Não deixaria cair na lama o espírito de ordem e de autoridade.” Era este o perfil do rei traçado por um homem que longe estava de ser monárquico.

Mas o rei vivia também momentos vitoriosos, como lembra o momento em que numa tourada no Campo Pequeno é aclamado com o grito: “Viva o rei liberal! Viva a liberdade! Viva o neto de Vitor Manuel!”

É difícil saber como teria sido a história de Portugal se D. Carlos e o príncipe real D. Luís Filipe tivessem sobrevivido àquele dia trágico de 1 de Fevereiro de 1908. A verdade é que naquele dia começa o século XX português. A força do rei D. Carlos, última energia capaz de regenerar o sistema, desaparecia e, ademais, inaugurava ali uma prática que se iria alastrar nas próximas décadas do novo século: o assassinato político.


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