O secretário de Estado Adjunto e da Educação – o título é, convenhamos, pomposo! – assinou um artigo de opinião no Público, no passado dia 3 de Setembro, intitulado “A Cidadania não é facultativa”.
É sabido que o Governo declarou guerra contra um encarregado de educação de Vila Nova de Famalicão, cujos filhos foram obrigados a retroceder dois anos lectivos. Com esses corajosos pais solidarizou-se uma centena de individualidades da cultura e educação, entre as quais há que referir um ex-Presidente da República, dois ex-primeiro-ministros, um ex-presidente do Tribunal Constitucional, o próprio ‘pai’ da Constituição da República Portuguesa, vários ex-ministros, um deputado do Partido Socialista, o Chefe da Casa Real Portuguesa, o Cardeal Patriarca de Lisboa, o reitor da Universidade Europeia, um ex-reitor da Universidade Católica Portuguesa, vários professores universitários, etc. Nas redes sociais, o polémico secretário de Estado também foi muito contestado, nomeadamente pelo apartidário Movimento Deixem as Crianças em Paz, que se opõe à implementação da ideologia de género no ensino. Desde que o caso foi divulgado pelo Notícias Viriato, ainda não se ouviu, dos outros secretários de Estado do seu ministério, nem do seu ministro, nem do primeiro-ministro, uma palavra de apoio a este membro do Governo.
Recorrendo a um sofisma, afirma o autor desse artigo que há quem queira “que a cidadania seja uma opção e não um dever de todos”. Claro que, com a mesma razão, ou falta dela, o secretário de Estado, por ser facultativa a disciplina de Religião e Moral, também deveria concluir que são imorais os que são contra a obrigatoriedade desta matéria, pois entenderiam que a moralidade é facultativa…
É, diga-se de passagem, um argumento tipicamente autoritário. Os nazis também diziam que eram traidores à pátria os que se opunham à sua ideologia. Segundo essa lógica totalitária, esse partido era o único que servia os interesses nacionais e, portanto, quem se lhe opunha era, necessariamente, um inimigo do Reich e, como tal, devia ser eliminado. Com a mesma enviesada lógica, o Governo quer dar a entender que, como a cidadania é obrigatória, a disciplina Cidadania e Desenvolvimento também o deve ser.
A questão não é a de saber se a cidadania deve ser obrigatória ou facultativa, mas se a disciplina Cidadania e Desenvolvimento deve ser, ou não, obrigatória. Uma segunda questão, não menos importante, é a determinação dos seus conteúdos objectivos. Por último, interessa questionar a legitimidade do Estado para impor, aos alunos, um modelo de cidadania que não tem fundamento científico. Sendo uma área com conteúdos claramente ideológicos, parece óbvio que excede o âmbito da educação que o Estado deve ministrar. Assim sendo, os pais, por razões de consciência mas também constitucionais, poder-se-iam opor a que tais concepções ideológicas sejam ‘ensinadas’ nas escolas.
É importante esclarecer a diferença entre uma aula de Biologia em que, por hipótese, se explica o aparelho reprodutor humano, e o de uma aula sobre sexualidade, em sede de Cidadania e Desenvolvimento. No primeiro caso, trata-se de uma exposição científica; mas no segundo não, porque os comportamentos sociais dependem das convicções religiosas e morais dos alunos e das suas famílias, que há que respeitar.
A Biologia deve ser, como qualquer outra ciência, ensinada nas escolas, mas alguns conteúdos da disciplina Cidadania e Desenvolvimento, como aliás a Educação Sexual, correspondem prioritariamente às famílias, porque dependem da sua religião, dos seus valores, da sua moral, da sua tradição cultural, da sua condição social, etc. É compreensível e respeitável que um casal, partidário da ideologia de género, não queira que os seus filhos recebam certas aulas de Cidadania e Desenvolvimento, ou de Educação Sexual, segundo a Doutrina Social da Igreja; como também é razoável que um casal, católico, não queira que os seus filhos recebam essas aulas de Cidadania e Desenvolvimento, ou de Educação Sexual, segundo a ideologia de género.
Se um professor de Biologia for competente e sério profissionalmente, é indiferente que seja católico ou partidário da ideologia de género, mas o mesmo já não se pode dizer em relação a alguns temas de Cidadania e Desenvolvimento, ou à Educação Sexual. No primeiro caso, transmitem-se realidades objectivas, enquanto no segundo se ensinam comportamentos e atitudes, que pressupõem determinados valores e princípios morais. Alguns conteúdos da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, não sendo científicos, são ideológicos, embora apresentados sob aparência científica.
Cai, pois, pela base, o argumento de que, contra o conhecimento, não há objecção de consciência que valha. Com certeza que não é aceitável que um aluno, ou seus pais, por uma questão religiosa ou moral, recusem a assistência às aulas de Matemática, de Inglês, ou de Química. Mas, como já se referiu, alguns temas lecionados em Cidadania e Desenvolvimento não correspondem a nenhuma ciência. O próprio secretário de Estado o reconheceu, quando enunciou os domínios desta disciplina: “Direitos Humanos, Igualdade de Género, Interculturalidade, Desenvolvimento Sustentável, Risco, Educação Ambiental, Saúde; Sexualidade; Media; Instituições e Participação Democrática; Literacia Financeira e Educação para o Consumo; Segurança Rodoviária; Empreendorismo; Mundo do Trabalho”.
Uma tal manta de retalhos não só não obedece a nenhuma ordem sistemática – que tem a ver a segurança rodoviária com a literacia financeira?! – como inclui temas claramente ideológicos, como a ideologia de género, eufemisticamente designada ‘igualdade de género’, a sexualidade, a interculturalidade, etc. Que estas questões sejam expostas aos alunos, segundo as concepções políticas, religiosas, morais e sociais dos programas oficiais, ou dos professores, sem o conhecimento nem o consentimento das famílias, no âmbito de uma disciplina curricular e, portanto, obrigatória, sob uma inverosímil aparência científica, constitui um monstruoso atentado à liberdade de educação dos alunos e das famílias portuguesas.
Escuda-se o secretário de Estado no cumprimento da lei e, por isso, afirma que “não há um despacho a ‘chumbar dois alunos’”, nem “nenhum aluno foi mandado reprovar pelo Ministério da Educação”. Pois não. Pelos vistos, foi a escola, que, arrependida de os ter passado com as melhores notas, decidiu fazê-los regredir dois anos. Ou talvez tenham sido os pais deles, que os obrigaram a esse retrocesso nos seus estudos. Claro que o assassino também pode dizer que não matou ninguém, porque se limitou a pressionar o gatilho da pistola de que saiu a bala que, essa sim, cometeu o crime.
O Professor Mário Pinto, em excelente crónica, já aqui repôs a verdade, desmentindo o secretário de Estado: “Não é verdade o que Vossa Excelência declarou ao Telejornal da RTP 1”. Com efeito, foi este secretário de Estado que “assinou um despacho de concordância sobre uma decisão, anulando decisões de Conselhos de Turma que, em dois anos sucessivos, na escola pública de Famalicão, tinham aprovado a passagem de ano de dois alunos com a máxima classificação de 5, apesar de não terem tido frequência na disciplina de Educação para a Cidadania. Concordando com as anulações de passagem de ano, por esse meio homologou essas decisões anulatórias. Portanto, usando agora uma linguagem popular, compreensível para toda a gente”, o secretário de Estado foi quem “chumbou decisivamente e retroactivamente os alunos que, em dois anos sucessivos, já tinham transitado de ano”.
Adolf Eichmann também se desculpou, dizendo que ele apenas tinha cumprido ordens: uns, organizando os comboios que levaram milhões de inocentes para os campos de extermínio nazis; outros, mandando chumbar, dois anos consecutivos, os melhores alunos de uma escola. Adolf escondeu-se atrás do outro Adolf, como Costa se pode desculpar com outro Costa. Não são casos comparáveis, mas a solução é idêntica: a responsabilidade é dos outros, sejam eles o Führer ou a lei. Ou será que a culpa foi do maquinista?!
P. Gonçalo Portocarrero de Almada
Fonte: Observador
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