terça-feira, 1 de junho de 2021

Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital: um “pesadelo orwelliano”

 


Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, aprovada pela Assembleia da República a 8-4-2021 e promulgada pela Presidência da República a 8-5-2021, está a gerar polémica nos meios digitais, que é o seu objecto.

O Chega e a Iniciativa Liberal (IL) abstiveram-se na votação final global, juntamente com o Partido Comunista e Os Verdes, aprovando o Parlamento, sem votos contra, aquela que já é vista como a nova lei da censura. Passado uma semana de espiral de silêncio do sistema, desconhecem-se ainda as razões desta abstenção do Chega e da IL, uma vez que os dois deputados estiveram presentes na votação e tinham votado contra os projetos na generalidade, a 2-10-2020.

Na votação na generalidade, Cotrim de Figueiredo dizia, sem rodeios, que a Carta era “ridícula” e que “acaba por ser uma desculpa mal disfarçada para aprovar instrumentos avulsos de monitorização e controlo digital por parte do Estado“, estando “mais preocupada com as ameaças para o Estado do que com as ameaças às liberdades dos cidadãos”. Do mesmo modo, André Ventura dizia não haver nessa Carta “interesse nenhum em defender a liberdade na internet“, que o objetivo da lei seria a pretensão do Partido Socialista (PS) em “censurar alguns discursos políticos em Portugal”. O líder do Chega acabou a sua intervenção na Assembleia dizendo que “o Partido Socialista assumiu-se hoje como o grande censurador em Portugal” e que “não conseguirá calar as redes sociais“.

Nenhuma das intervenções, contudo, fazia referência aos órgãos de comunicação social digitais. Noticiada a sua promulgação pelos vários órgãos de comunicação sistémicos como uma lei de “garantia de direitos”, de proteção contra “desinformação” no ciberespaço, rapidamente foi contraditada pelo jornal digital Notícias Viriato. Aí, António Abreu concluiu que “acabou oficialmente a liberdade de expressão e de imprensa em Portugal”, seguido pelo jornal brasileiro Terça Livre que, em 13-5-2021, noticiou que o “Governo de Portugal regulamenta censura contra seus cidadãos”. Hoje, 14-5-2021, o publisher do Observador, José Manuel Fernandes, publicou um episódio, do seu podcast, intitulado “A censura está de regresso e ninguém protesta?”, no qual participou o ex-candidato presidencial da Iniciativa Liberal Tiago Mayan, ambos com a posição vincada de que teria sido melhor não se legislar sobre esta matéria.


Preâmbulo de um “pesadelo orwelliano”

No Projecto de Lei de iniciativa do Partido Socialista até se refere George Orwell: “Aos objetivos referidos somam-se outros não menos ambiciosos como o de propiciar melhor democracia e novas formas de participação cívica em sociedades livres do pesadelo orwelliano“1… Não deixa de soar irónico, pois o famoso escritor britânico sempre se opôs à censura de que esta lei é porta de entrada, como veremos em seguida.

O preâmbulo do PS (ver o do PAN aqui), começa por descrever a situação actual do acesso à internet, que considera ser de “exclusão digital” de parte da população, o que, na opinião dos autores, “pode comprometer” os objectivos da “Agenda 2030” de organizações internacionais.

Com efeito, é em recomendações, alertas e relatórios de organizações não-eleitas e convenções internacionais que todo o diploma é baseado, ancorando-se em conceitos ambíguos ou por definir como “governance” e “incitamento ao ódio”, numa vontade sistemática de integrar e unificar as várias iniciativas nacionais e regionais de regulação do meio online.

Recorde-se que, em 1-7-2020, a ministra da Presidência já ameaçava “monitorizar a internet, o que também gerou uma onda de indignação nas redes sociais e a crítica da Iniciativa Liberal à criação de um “barómetro mensal de acompanhamento e identificação de sites“.

Fundando-se naquilo que já é a pretensão assumida de “governação da internet“, a partir de discussões no “Grupo de Trabalho da Governação da Internet, e no Fórum da Governação da Internet, criados pela ONU em 2005, o preâmbulo lamenta não haver ainda uma carta internacional dos direitos digitais, pelo facto do mundo ainda ser “multipolar, com códigos de uso e regulação muito distintos no Ocidente (Europa e América do Norte) e na China e Rússia”, e ainda “devido à inexistência de um sistema sólido de governance“. Antes desta conclusão, refere-se ainda aos danos causados pela “crise civilizacional, as vagas de xenofobia, o populismo, a intolerância política e religiosa, os nacionalismos, o racismo.”

São recorrentes na Carta conceitos vazios, indefinidos, aparentemente auto-explicáveis, como por exemplo: “O digital é considerado essencial para a luta contra as alterações climáticas e a realização da transição ecológica.”

A primeira vez que se fala diretamente em censura é precisamente depois da paradoxal referência a Orwell, na página 9 do documento: “Dada a crescente importância das redes sociais e as dificuldades suscitadas pelo conflito entre a liberdade de expressão e outros direitos que pode levar à necessidade de remoção de conteúdos digitais, alguns dos grandes operadores mundiais têm feito esforços conjuntos para fixar critérios e regras sobre a moderação de conteúdos gerados pelos utilizadores (Princípios de Santa Clara)”.

Adiante, admite-se que os deputados signatários acharam que “não traria valor acrescentado” fazer desta lei uma compilação de direitos digitais já existentes, embora reconhecendo que temas como “as alterações de fundo à Lei de Imprensa (…) devem ser ponderados nas sedes próprias, segundo ritmos diversos, sem prejuízo da colaboração entre Estados-Membros”.

Assim sendo, o Projecto de Lei reivindica “enunciar um elenco de direitos, liberdades e garantias diversificado e abrangente, que inove, clarifique e valha também como bases de um programa de acção vinculativo dos órgãos de poder”. Fica-se, então, sem saber se se pretende ou não inovar nesta matéria, facto que só de seguida se descobre no texto da lei.


Direitos contra a “desinformação”?

O decreto começa, no seu artigo 1.º, por garantir que os “direitos, liberdades e garantias”, consagrados e tutelados pela ordem jurídica portuguesa, “são aplicáveis no ciberespaço”.

Podia a lei ter ficado por aqui, como apontou Cotrim de Figueiredo na primeira votação: “Cabe num tweet, e se tivesse ficado por aqui já não correria o risco de ser ridícula”.

De seguida, no artigo 4.º, intitulado “Liberdade de expressão e criação em ambiente digital”, define-se que “Todos têm o direito de exprimir e divulgar o seu pensamento e criar, procurar, obter e partilhar ou difundir informações e opiniões através da Internet, de forma livre, sem qualquer tipo ou forma de censura, sem prejuízo do disposto na lei relativamente a condutas ilícitas“. Refere ainda o compromisso do Estado em que “o ciberespaço permaneça aberto à livre circulação das ideias e da informação e assegure a mais ampla liberdade de expressão, assim como a liberdade de imprensa“. Até aqui nada de novo: a própria Constituição Portuguesa de 1933, que também alegava a defesa da “liberdade de pensamento sob qualquer forma” (artigo 8.º), prometia simultaneamente as “leis especiais” que “regularão o exercício da liberdade de pensamento” (artigo 20.º), como lembra António Abreu, acusando as similaridades (a partir do minuto 9:37).

De igual forma – guardadas as devidas proporções entre leis e decretos-lei e Constituição –, no ponto 3 do artigo 4.º da Carta, especifica-se o que são “condutas ilícitas”: “todas as formas de discriminação e crime, nomeadamente a apologia do terrorismo, o incitamento ao ódio e à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, o assédio ou exploração sexual de crianças, a mutilação genital feminina e a perseguição.”

Nesta amálgama de crimes, escritos na novilíngua da distopia orwelliana, fica-se sem saber qual a inovação em relação ao que os códigos existentes já prevêem.

A partir daqui, já no artigo 6.º, “Direito à proteção contra a desinformação”, inicia-se aquilo que será o coração de toda a controvérsia. Começa por referir o “Plano Europeu de Ação contra a Desinformação”, que é um plano do final de 2018, por sua vez elaborado na sequência de de uma decisão do Conselho Europeu de Março de 2015, a propósito de uma alegada campanha de desinformação da Rússia.

De seguida, garante-se a protecção da sociedade “contra pessoas singulares ou colectivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação“, definindo desinformação como “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos“. E define-se “informação comprovadamente falsa ou enganadora” aquela que usa “textos ou vídeos manipulados ou fabricados”, spam e bots, salvaguardando-se os “erros na comunicação de informações”, as “sátiras” e as “paródias”. A Carta não esclarece quem é a entidade que avalia qual a informação que é falsa e enganadora. Ainda que atribua à Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) a responsabilidade de apreciar, neste âmbito, as queixas apresentadas.

Já a ERC, numa deliberação de resposta aos projetos do Partido Socialista e do PAN, de 2-2-2020, alerta que o texto da Carta enuncia “direitos inexequíveis”, nota o desrespeito por aquilo que é a especialidade da entidade definida nos seus estatutos, apresenta reservas quanto aos “conceitos abstratos e indefinidos, sem clarificação do âmbito de aplicação do diploma, seus destinatários, definição clara do nível de protecção que se pretende conferir (…)”, entre outras preocupações, como o facto do “direito de resposta”, que considera ser “um dos direitos fundamentais que deve ser garantido em ambiente online“, não ser reconhecido por nenhum dos Projectos de Lei, nem tão pouco pelo diploma final aprovado.

Em relação à associação dos direitos contra a desinformação ao Plano Europeu de Luta contra a Desinformação, a ERC entende tratar-se de “futurologia legislativa pouco recomendável”, indicando antes o Código de Conduta contra a Desinformação, que no quadro europeu densifica as questões e conceitos que se pretendem concretizar.

Outras entidades manifestaram-se também contra o diploma nos pareceres que emitiram. A Associação Portuguesa de Imprensa (API) manifesta-se contrária à equiparação da actividade jornalística a qualquer narrativa colocada on-line e a atribuição de selos a conteúdos protegidos por códigos de conduta e autorregulação. A APDCI considera que “podemos estar perante um controlo de opinião, por entidades verificadoras, algo que pode virar-se contra o próprio objectivo declarado deste Projecto de Lei [do PS]”. E a ANACOM realça que a atribuição de selos de qualidade pode gerar discriminação de sites pela impossibilidade material de análise à totalidade dos sites existentes.

O polémico artigo 6.º da Carta promete apoio, por parte do Estado, na criação de “estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados [na ERC]”, incentivando “a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”.

Relativamente a este aspecto, informa o Conselho Regulador da ERC que “carece, no mínimo, de cautelas, devendo sempre assegurar-se que tal estímulo não conduz a uma limitação desproporcionada e injustificada da liberdade de expressão”. E lança sérias dúvidas quanto à sua pertinência: “Ter-se-á por adequada, necessária e proporcional em todas as circunstâncias, a interferência de plataformas digitais e redes sociais nos conteúdos dos utilizadores? Estarão estes operadores apetrechados para a concretização de fact-checkingQuais os critérios para o efeito?

O enviesamento político e ideológico dos órgãos de comunicação que fazem fact-checking de conteúdos de concorrentes, blogues e redes sociais, tem sido constantemente denunciado no espaço público. Irá o Estado preferir uns órgãos sobre outros e concessionar a atribuição de selo de qualidade aos média que sigam a cartilha totalitária da ideologia do politicamente correcto ou sirvam os partidos e entidades ligados ao poder, como é evidente no que agora fazem?!…

Promulgado este decreto pelo Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, está aberta a porta à censura pelo Estado, e entidades dependentes, da liberdade de informação e de opinião em Portugal.


Maciel RodriguesDiretor-Adjunto

Fonte: Inconveniente

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