terça-feira, 1 de junho de 2021

A Pretexto da Desinformação, Porta Aberta à Censura

 


1. A aprovação pela Assembleia da República, no dia 8 de Abril, da chamada «Carta de Direitos Humanos na Era Digital» é um dos mais graves incidentes na relação do regime com as liberdades de imprensa e de informação, em particular com esse átrio único de liberdade que é o digital.

2. No artigo 6.º da Carta, o Estado atribuiu-se o poder de «proteger a sociedade» – expressão de reminiscência curiosa – suprimindo as narrativas que considerar «falsas e enganadoras».

3. Apesar do bonito minuto consagrado pelo deputado João Cotrim de Figueiredo a denunciar o dislate, nem ele, nem os que não votaram a favor, votaram contra a aprovação, como seria exigido pela coragem e pela rectidão de princípios.

4. A Carta, sob pretexto de concretizar nacionalmente o «Plano Europeu de Combate à Desinformação», vai muito além dele, omitindo a referência a limites importantes, como a exclusão do âmbito do Plano Europeu das «notícias e comentários claramente identificados como partidários», e transformando aquilo que foi pensado, originalmente, como uma acção relacionada com a segurança da União face a agentes desestabilizadores externos, numa permissão muito mais abrangente para fiscalizar e coarctar actividades noticiosas internas.

5. Nos conceitos de «desinformação» e «narrativa comprovadamente falsa e enganadora» cabem o mundo. Em norma que atribui ao Estado poderes para a supressão de conteúdos com o fim de «proteger a sociedade», a indefinição conceptual é, do ponto de vista jurídico, extremamente preocupante. O conceito central da norma, o de «narrativa», suscita as maiores dúvidas.

6. Com efeito, a versão oficial do Plano Europeu em língua portuguesa usa principalmente o conceito de «informação» na definição do seu escopo. A Carta, sem que se perceba a razão, substituiu-o pelo conceito de «narrativa», i.e., «narrativa comprovadamente falsa e enganadora». Sendo o conceito de «narrativa» muito mais abrangente, uma vez que pressupõe a articulação de proposições segundo uma certa ordem de sentido, traduzindo uma apreciação particular do encadeamento de factos, será correspondentemente maior a esfera de fiscalização do discurso pelo Estado.

7. O objecto próprio da verdade e da falsidade são as proposições, não as «narrativas». Do mesmo conjunto de proposições (factos) verdadeiras, podem gerar-se diferentes narrativas. De conjuntos distintos de proposições, todas elas verdadeiras, geram-se evidentemente diferentes narrativas. Do que falar, como falar, o que omitir, o tom e a ênfase com que se fala são as escolhas que determinam distintas narrativas, sem que para tanto seja necessário usar de informações falsas. Simplesmente, a resposta a estas perguntas, e as narrativas consequentes, são produto dos interesses ou valores filosóficos prévios do «narrador». Por isso, não há, em relação ao todo narrativo propriamente verdade; pode e deve haver é rigor no tratamento das fontes e na emissão dos juízos.

8. Assim, o conceito de narrativa falsa e enganadora é, no limite, contraditório e, para efeitos práticos, e pelas razões que enunciei, uma porta para condicionar a própria liberdade de pensamento ou de concepção filosófica, ou pelo menos da sua expressão, uma vez que, quase universalmente, os portadores de uma certa narrativa tendem a considerar as demais narrativas «falsas» e «enganadoras».

9. O parecer da Associação Portuguesa de Imprensa tocou, superficialmente, nesta nefasta confusão de conceitos de «informação», «notícia» e «narrativa», alertando, coerentemente, para o perigo da fiscalização vir a assumir «contornos censórios».

10. É grave, e lamento que não tenha havido na Assembleia da República quem se tenha dignado a votar contra esta exorbitação do poder do Estado para controlo dos discursos nos átrios públicos, sempre em nome, como sempre e como dantes, de «proteger a sociedade».

Hugo Dantas, Jurista

Fonte: Notícias Viriato


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