terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

A VIDA DE LIXO DE (ALGUMA DA) COMUNICAÇÃO SOCIAL PORTUGUESA

 

Uma notícia recente afirmava que «metade dos jornalistas considera que jornalistas são agentes de desinformação» (título Rádio Renascença, de 2-2-2023). Esta afirmação resulta de um estudo da Labcom, unidade de investigação da UBI – Universidade da Beira Interior ao qual responderam 485 jornalistas.

Na verdade, o jornalismo tem sofrido, nos últimos anos, grandes transformações, mercê da pressão das redes sociais que esvaziaram parte do 5.º poder, destruindo o exclusivo da produção e da disseminação da notícia. Contra este fenómeno os media lançaram, por um lado uma vasta campanha de vigilância, a que chamaram fact-checking, por outro cederam à pressão da encomenda de notícias, através de formas de publicidade mascarada ou dita institucional.

A estratégia de outros meios de comunicação é antecipar-se à notícia popular, ou seja, àquela que parte da vox populi, ao mesmo tempo acusação, juíz e carrasco.

A capa do último número da revista Sábado, n.º 979 de 2-8 de Fevereiro traduz plenamente esta estratégia. As parangonas anunciam uma espécie de notícia bombástica, que estaria a acontecer mesmo ao nosso lado: A vida de luxo da última família real portuguesa, sendo que o último rei foi destronado em 1910 e faleceu em 1932. A oportunidade desta notícia é, pois, estranha e, no mínimo, publicada com «algum» atraso.

Em letras menores, contextualiza-se tal «escândalo»: «D. Carlos organizava almoços ligeiros de 10 pratos e D. Maria Pia fazia oito homens carregarem um piano a pé ao longo de 40 km. Mesmo no exílio D. Manuel II tinha 17 criados e uma casa com campos de golfe e ténis». As circunstâncias e os intervenientes são tão estapafúrdias, que alguém julgaria estar a ler o guião de um episódio dos Monthy Piton.

Mas, no interior na revista, o artigo de fundo aprofunda a loucura do suposto esbanjamento. É assinado por Ana Taborda, redactora principal da revista e, segundo a mesma, «responsável pela secção de sociedade». De facto, muito do que lemos escrito pela sua mão se enquadraria na secção social de qualquer revista cor-de-rosa, fazendo mais sentido se fosse uma reportagem sobre a vida de luxo de, por exemplo, Cristiano Ronaldo e da sua família.
Para escrever este texto Ana Taborda, jornalista, parece ter lido os seguintes livros:
«As amantes dos Reis de Portugal», de Ana Cristina Pereira e Paula Lourenço;
«D. Carlos. A vida e o assassinato de um rei», de José Manuel de Castro Pinto;
«Dom Manuel II. A biografia do último rei de Portugal», de João Miguel de Almeida;
«Eu, Amélia Última rainha de Portugal», de Stéphane Bem;
«D. Carlos atirador de caça», de Águedo de Oliveira;
e «História libidinosa de Portugal», de Joaquim Vieira.

Vejamos a formação de cada um dos autores destas obras: José Manuel de Castro Pinto frequentou o Instituto Comercial e licenciou-se em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa; Stéphane Bern é um jornalista francês, do escândalo e do social; Artur Águedo de Oliveira, um político salazarista e Joaquim Manuel Prudêncio Vieira, jornalista e romancista português. Pelo meio há o recurso a dois ou três licenciados e mestres em História, como Ana Cristina Pereira, e até professores universitários, como João Miguel de Almeida. Porém, as fontes de informação para esta notícia bombástica não são na maioria trabalhos de historiadores profissionais, mas de literatos que encontraram em títulos como «História libidinosa de Portugal», o seu ganha-pão.

Não seria difícil rebater grande parte do texto da jornalista Ana Taborda, sobretudo pelo desconhecimento da mesma em questões tão simples como legislação da época, política e diplomacia. O que lhe interessa é a história anedótica, o diz-que-disse e o boato fácil.
Ana Taborda recorre a autores tão pouco credenciados para explicar os últimos reinados dos monarcas de Portugal, como se eu recorresse a sapateiro para me ajudar a tratar um cancro. É, aliás, curioso, que os jornalistas se ponham em bicos dos pés para validar o que é ou não notícia, mas não se envergonhem de substituir-se a historiadores, sociólogos, engenheiros, geógrafos, etc.

É óbvio que não esperamos de uma revista como a Sábado um artigo de qualidade histórica, recorrendo à escrita séria e científica fundamentada em fontes primárias fiáveis e devidamente sujeita a crítica por historiadores. Mas também não esperaríamos na Sábado um artigo deste calibre, que envergonha quem o escreve e publica, repleto de lugares-comuns, vulgaridades, inexactidões históricas, considerações paternalistas e acusações infundamentadas.

Infelizmente não temos, em Portugal, associações profissionais que façam valer a boa escrita da História, de tal forma que qualquer um, sem qualificações para tal, possa assinar-se historiador, historiador de arte ou patrimonólogo.

E este tipo de artigo, de relevância duvidosa, mesmo invocando a memória do Regicídio (1 de Fevereiro), ajuda a corroborar a opinião de um conjunto substancial de jornalistas portugueses, que consideram a sua classe como agência de desinformação.


Nuno Resende


Fonte: Causa Real

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