- Introdução. “Naquele tempo, Jesus dirigiu-Se à sua terra e os discípulos acompanharam-n’O” (Mc 6, 1) – assim se inicia o trecho do Evangelho que corresponde a esta quarta-feira da semana quarta do tempo comum, que é também o primeiro dia do mês de Fevereiro e, sobretudo, o aniversário do regicídio que vitimou, no Terreiro do Paço, Sua Majestade Fidelíssima, El-Rei D. Carlos I, e o Príncipe Real, D. Luís Filipe. É sobretudo a sua memória que, aqui e agora, se evoca, sufragando as suas almas, sem esquecer os demais membros da Família Real já falecidos, nomeadamente Suas Majestades El-Rei D. Manuel II e a Rainha D. Amélia.
Como é já tradição nesta celebração anual, depois de concluída a Eucaristia, rezaremos um responso pelas almas das reais vítimas do regicídio, bem como por todos os restantes monarcas, príncipes e infantes, cujos restos mortais aguardam, no vizinho panteão real, a gloriosa ressurreição. Agradeço ao Reverendíssimo Senhor Cónego Jorge Dias, Reitor desta Igreja de São Vicente de Fora, por ter disponibilizado este magnífico templo para esta celebração. Comigo concelebra o Reverendíssimo Senhor Padre Tiago Ribeiro Pinto, que depois presidirá à celebração litúrgica no anexo panteão, muito grato pela sua presença, bem como pelo seu testemunho de fidelidade a Deus, na sua Santa Igreja, e a sua sacrificada disponibilidade no serviço da Família Real.
Terminadas as apresentações respeitantes ao clero, devo, em primeiro lugar, cumprimentar Suas Altezas Reais, os Senhores Duques de Bragança, na sua dupla qualidade de Chefes da Casa Real e de representantes de El-Rei D. Carlos e do Príncipe Real. Infelizmente, nem sempre as notícias que nos chegam de outras Casas Reais beneficiam a imagem da Instituição junto da opinião pública, mas, no que ao nosso país se refere, devemos dar graças a Deus pelo exemplo que, de forma discreta mas tão convincente, constantemente nos chega do Senhor Dom Duarte e da Senhora Dona Isabel. Ambos, com efeito, são exemplares, não apenas no seu patriótico serviço a Portugal, mas também no seu eloquente testemunho de fidelidade à Igreja católica que, fazendo jus a tão sincera e ininterrupta devoção dos monarcas lusitanos, os honrou com o título de fidelíssimos, que também é devido aos actuais titulares da Casa Real portuguesa, não apenas como seus representantes, mas também a título pessoal.
Como é também da praxe, saúdo os Presidentes da Causa Real e da Real Associação de Lisboa, os Cavaleiros e Damas da Ordem Soberana e Militar de São João, dita de Malta, e da Ordem de Cavalaria do Santo Sepulcro de Jerusalém, que igualmente honram esta celebração com a sua piedosa presença. Cumprimento ainda os membros das Ordens dinásticas de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, em representação da nossa Padroeira e Rainha, a Senhora da Conceição, e de Santa Isabel, a nossa tão popular e querida Rainha Santa.
É com especial gratidão que me dirijo, por fim, a todos os demais fiéis que, certamente com sacrifício, mais uma vez participam nesta Missa de sufrágio pelas vítimas do regicídio de 1908, enaltecendo, em primeiro lugar, a piedade da sua participação nesta celebração litúrgica. A memória de El-Rei D. Carlos e do Príncipe Real não apenas diz respeito aos que se revêem na Instituição Real, porque todos os verdadeiros patriotas não podem deixar de venerar estes insignes mártires da Pátria.
- O regresso de Jesus a Nazaré. Embora o evangelista São Marcos indique Nazaré como sendo a ‘pátria’ de Jesus (cf. Mc 6, 1), na realidade o não era, por duas principais razões. Com efeito, a sua naturalidade era a cidade de Belém, indicada como sendo, precisamente, a naturalidade do tão esperado Messias (cf. Miq 5, 2; Mt 1, 4-6). Era também Belém de Judá a sua pátria em sentido estricto, ou seja, a terra dos seus pais, na medida em que, pela linhagem de José, o filho de Maria era, legal e socialmente, da casa e família do Rei David (Lc 2, 4).
No entanto, como por razões de prudência, a Sagrada Família, ao regressar do exílio no Egipto, decidiu não regressar a Belém, estabelecendo-se na Galileia, numa pequena povoação chamada Nazaré (cf. Mt 2, 19-23) e que, a julgar por uma afirmação de Natanael – “De Nazaré pode porventura sair coisa que seja boa” (Jo 1, 46) – não era uma terra principal. Contudo, é de Nazaré que Jesus toma o nome, apelidando-se, desde então, pela referência a essa terra, segundo aliás uma praxe muito habitual, também entre nós, em que inúmeras famílias, sobretudo se apelidadas com um nome comum, acrescentaram ao apelido dos seus antepassados a referência toponímica (é, por exemplo, o caso dos Ferreira Pinto, de Basto; ou os Gonçalves Macieira, de Macieira da Maia, que trocaram o patronímico pela referência topográfica que, desde então, designa a família).
No princípio da sua vida pública, Jesus muda-se para Cafarnaum. Desde então, é aí que tem a sua residência, possivelmente na casa do pescador Simão, irmão de André, a quem chamará Pedro (cf. Jo 1, 42) por ser ele, como primeiro Papa, aquele sobre o qual o Mestre construirá a sua Igreja (cf. Mt 16, 18). Não obstante este seu domicílio, o ministério de Cristo é peripatético, no sentido em que continuamente percorre a Judeia e a Galileia, atravessando também a Samaria, onde não se demora, por razão dos atritos entre samaritanos e judeus, de que deu conta a boa mulher que Jesus encontrou junto ao poço de Sicar (cf. Jo 4, 1-26).
Mas Nazaré, apesar das frequentes deslocações de Jesus, continua presente na vida do Mestre, não apenas por ter sido o lugar da sua infância, adolescência e maturidade, ou porque aí exerceu, durante anos a fio, o mesmo ofício de São José (cf. Mc 6, 3), mas sobretudo porque aí permanecia sua Mãe, Maria. Quer pela sua viuvez – não se sabe quando se deu o falecimento de José, mas decerto já tinha ocorrido quando se dá o casamento em Caná da Galileia, em que já não está presente (cf., Jo 2, 1-11) – quer também por Jesus ser filho único – por este motivo, na Cruz, entrega a sua Mãe a João (cf. Jo 19, 25-27), por não ter irmãos a quem a deixar – Nossa Senhora estava muito só, humanamente falando. Por uma razão de piedade filial e da mais elementar justiça, Jesus não podia deixar de visitar Nossa Senhora com alguma frequência. Maria aceitaria essa dolorosa separação, com o mesmo espírito com que também se resignou ante a morte do seu Filho na Cruz, porque era assim que se devia cumprir a vontade salvífica de Deus.
Sendo Maria muito provavelmente natural de Nazaré, como diz São Lucas (cf. Lc 1, 26-27), de lá seriam também os seus pais, irmãos e sobrinhos. São estes, precisamente, que são aqui referidos como ‘irmãos’ de Jesus, porque a língua aramaica não distingue irmãos e primos direitos, ou coirmãos, a todos chamando, genericamente, irmãos. Portanto, os citados “Tiago, José, Judas e Simão”, bem como “as suas irmãs” (Mc 6, 3) eram, pela certa, sobrinhos de Maria e, portanto, primos direitos de Jesus. Deve ter sido com eles que, por serem da sua família e mais ou menos da sua idade, Jesus mais conviveu durante a sua infância e adolescência, até porque a família paterna, sendo José de Belém de Judá, não estaria tão próxima, nem seria, por isso, acessível. O facto de a Sagrada Família não ter encontrado alojamento em Belém, quando era iminente o nascimento de Jesus (cf. Lc 2, 1-7), que por isso teve de vir ao mundo num estábulo, indicia uma relação distante, senão mesmo hostil, de José com os seus parentes que ainda viviam em Belém.
Apesar de Pedro e André serem irmãos, como também o eram os filhos de Zebedeu, João e Tiago, cuja mãe pede a Nosso Senhor que coloque estes dois seus filhos à sua direita e esquerda (o que já me levou a pensar que devia ser portuguesa, e que, pela certa, o seu apelido era Cunha!), não parece que os parentes de Jesus tenham aderido à sua pregação. Pode ser que esta sua aparente indiferença se deva ao facto de Jesus, ao tempo da sua permanência na Galileia, onde com eles convivia naturalmente, não ter protagonizado nenhum acontecimento extraordinário, pois o seu primeiro milagre aconteceu em Caná da Galileia (cf. Jo 2, 1-11). Não só os familiares de Jesus parecem pouco dispostos a acreditar na sua mensagem, como até chegam a provocar um episódio caricato, quando O quiseram “prender, porque diziam: ‘Está louco’.” (Mc 3, 21).
- A especial missão da Família Real. Quando, no dia de sábado, já em Nazaré, Jesus começou a ensinar na sinagoga, os seus conterrâneos comentaram: “‘De onde Lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, Filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão as suas irmãs aqui entre nós?’. E ficavam perplexos a seu respeito.” (Mc 6, 2-3).
A perplexidade daqueles parentes de Jesus é a nossa também: como é possível que, conhecendo-O há tanto tempo, não soubessem quem Ele era?! Como explicar aquela estranheza, vinda daqueles que era suposto que mais e melhor O deviam conhecer e amar?! Se surpreende a hostilidade que Jesus sofreu noutras regiões da Terra Santa, indigna esta incredulidade daqueles que, por serem os seus parentes, deviam ser os seus melhores amigos e fiéis seguidores.
Jesus também não escondeu a sua perplexidade, ante a frieza dos ditos seus irmãos, e demais conterrâneos: “Jesus disse-lhes: ‘Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa’.” Essa ingratidão daqueles seus primos e demais nazarenos, explica que Nosso Senhor não tenha feito nenhum prodígio em Nazaré, como também explica São Marcos: “Não podia ali fazer qualquer milagre; apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. Estava admirado com a falta de fé daquela gente. E percorria as aldeias dos arredores, ensinando” (Mc 6, 1-6).
Quando, logo após o vil assassinato do Rei D. Carlos I e do Príncipe D. Luís Filipe, as augustas mães de ambos se encontraram, a Rainha D. Maria Pia exclamou: “-Mataram o meu filho!”, ao que a Rainha D. Amélia, que tinha acabado de enviuvar, respondeu: “- Também mataram o meu!” Enquanto a Rainha Mãe tinha a lamentar a morte de um filho e de um neto, a Rainha D. Amélia acabava de perder o marido e o filho primogénito. Ambas foram, nesses seus tão dolorosos lutos, vítimas do regicídio, porque os mesmos tiros que cobardemente mataram o Rei e o Príncipe Real, feriram os seus corações maternos. O que caracteriza a monarquia não é tanto, como o nome erradamente sugere, o governo de um só, mas de uma Família que, se tem direito a acrescidas honras, é também porque tem redobradas obrigações no que respeita o serviço do Estado e da Instituição Real.
Enquanto, em república, os familiares do Chefe do Estado não têm qualquer missão, nem estatuto oficial, na monarquia o cônjuge do monarca com ele partilha a realeza, com o título de Rainha ou, entre nós, depois de nascido o Príncipe herdeiro, de Rei. Também os irmãos e sobrinhos do soberano estão naturalmente chamados ao desempenho de funções de representação nacional, sempre em total fidelidade e subordinação ao soberano. São, aliás, estas funções que justificam que, nas modernas monarquias europeias, os príncipes da Família reinante recebam encargos de representação.
O último gesto do Príncipe Real, Dom Luís Filipe, foi o de defender o seu augusto Pai, expondo-se assim às balas que causaram a sua morte. Não foi apenas um mártir da Pátria, mas também um heróico exemplo de devoção filial e de fidelidade ao seu Rei e Senhor. Se tivesse pensado, nesse momento trágico, em si mesmo, o Príncipe poder-se-ia ter resguardado, mais ainda sendo ele o que, na ausência do seu pai, estava chamado a ocupar o trono lusitano. Com a nobreza que é timbre dos verdadeiros príncipes, D. Luís Filipe sabia que o seu principal dever era servir o seu Rei, mesmo que fosse à custa da sua vida. O seu sacrifício não foi em vão, porque permanece como lição de amor filial e do que a Coroa espera de todos os membros da Família Real, bem como de quantos fizeram sua esta Causa.
Se é verdade, como já se disse, que de Suas Altezas Reais, os Senhores Duques de Bragança, só há a registar exemplos de virtudes cívicas e cristãs, o mesmo se pode dizer, graças a Deus, dos actuais Príncipes da Casa de Bragança. Em tudo o mais, os Infantes podem ceder a primazia, mas no serviço ao Rei e à Pátria, compete-lhes sempre o primeiro lugar, para que a ‘alteza’ da sua condição seja justificada pela elevação da sua vida moral, familiar e pessoal. Não se exige a um Infante de Portugal que seja célebre, nem famoso, mas que seja o primeiro em honrar e servir o seu País, pelo respeito e serviço ao Rei e a Portugal.
- Conclusão. O relato evangélico agora proclamado termina com uma constatação de facto que nos enche de tristeza e, também, de apreensão: “não podia ali fazer qualquer milagre; apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. Estava admirado com a falta de fé daquela gente. E percorria as aldeias dos arredores, ensinando” (Mc 6, 5-6). Tristeza, porque a falta de fé daquelas gentes de Nazaré foi a causa que impediu os muitos milagres que o Mestre poderia ter feito lá, em benefício dos mais necessitados dos seus compatriotas. Apreensão porque, se assim foi há dois mil anos, também agora pode acontecer que o Senhor não faça os milagres, que são necessários para a salvação da nossa pátria, precisamente pela nossa falta de fé.
Em Caná da Galileia, foi a Maria a quem se ficou a dever o primeiro milagre de Jesus, em virtude do qual não só converteu a água em vinho, como também os discípulos do Senhor n’Ele creram (Jo 2, 1-11). Que a fé de Maria, que está na origem da fé da Igreja, crie em nós aquela firme disposição de que Jesus quer precisar para que, finalmente, se cumpra Portugal!
Rev. Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada
Fonte: Real Associação de Lisboa
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